Como citar:

Santos, Ana. 2011. História da Volta a Portugal em bicicleta.  In Uma História do Desporto em Portugal, N. 11 – 50. ISBN: 978-989-554-888-0. Lisboa : Centenário da República – QUIDNOVI

HISTÓRIA DA VOLTA A PORTUGAL EM BICICLETA

Ana Santos

_________________________________________________________________________

Traçado da primeira Volta a Portugal realizada em 1927

Introdução

Como deve ser contada a história da Volta a Portugal em bicicleta? Sobre a Volta existem as histórias pessoais de emoções nela vividas que, uma vez partilhadas, constituem uma estrutura de sentimentos comum. E, na memória colectiva, a Volta tem um tempo próprio marcado pela rivalidade fundadora que existiu entre Nicolau e Trindade, pelas vitórias de Alves Barbosa mais a sua ida ao Tour e, sobretudo, por Joaquim Agostinho que ao ciclismo dá uma vida nova e, com a sua morte numa corrida, lhe lega um trauma.

A Volta a Portugal em bicicleta é um evento desportivo mediático que ultrapassa os oitenta anos de existência e este ano celebra a 72ª edição. Nas primeiras décadas do século XX a criação de eventos desportivos faz parte da estratégia de competição entre os jornais que promovem a sua popularidade  com as notícias do drama gerado pelas disputas desportivas. A primeira Volta data de 1927 e é resultado de uma parceria entre os jornais Os Sports e o Diário de Notícias que se inspiram no Tour de França, inventado pelo jornal L’Auto em 1903, e o tomam como o modelo a seguir.  

A história da Volta tem, desde então, uma relação de proximidade com o Tour e é na articulação singular com o território nacional que dele se distancia e distingue. É o percurso próximo dos limites da fronteira que nacionaliza estas corridas e lhes oferece o carisma que as promove face a todas outras. Mas a natureza mediática das voltas exige mudança e inovação o que as afasta dos limites fundadores para, na orografia do território, buscarem a incerteza que alimenta as narrativas épicas das etapas de montanha.

A Volta das primeiras décadas continha aspectos sedutores que se alteraram. É a intenção de ligar as extremidades geográficas do território por um percurso feito de bicicleta que fascina todos aqueles que vêm nesta nova tecnologia de transporte a mobilidade que promete maior autonomia e liberdade pessoal. São os limites que antes jogaram com o espaço da nação que se quebram e, agora mais constritos, revelam o poder de topografias singulares como a Torre e a Srª da Graça em torno das quais a Volta repetidamente gira.

É através do significado histórico de cada evento que se explica como, no tempo, o Tour se torna um mega-evento do ciclismo mundial e a Volta, tão só,  no maior evento do ciclismo português.  Ao nível mediático, a história faz-se de narrativas que procuram transmitir ao público a emoção vivida no espectáculo da corrida. A tecnologia de comunicação enfatiza o ritual e se na fotografia a multidão é testemunha do sucesso já para a televisão a multidão actua e, desse modo, amplia a energia emocional essencial à promoção das trocas económicas do evento.

1.    A singularidade da corrida e o significado da fronteira

A invenção da Volta e do Tour

Tanto a Volta a Portugal como o Tour de França são corridas de bicicletas que se distinguem de todas as outras pela articulação que os primeiros traçados estabelecem com a linha da fronteira territorial das respectivas Nações. É também esta relação simbólica com a fronteira que permite comparar a Volta com o Tour e, ao longo do tempo, entender a hierarquia entre a Volta e o Tour.  

Volta a Portugal (1927)

A Volta é criada em 1927 e o primeiro itinerário realiza um desenho paralelo à linha da fronteira do continente português que, por sua vez, simboliza os contornos da pertença nacional. Quando os organizadores da Volta fazem da fronteira um recurso simbólico da corrida nacionalizam uma corrida de bicicletas, inventam o Tour dos portugueses.

A primeira edição francesa, realizada em 1903, fica conhecida como o Tour do maciço central (Boury, 1997). O itinerário previsto era mais extenso mas a não inscrição de ciclistas para o realizar levou Desgranges, director do jornal L’Auto e ideólogo da prova, a reduzir o número de quilómetros a percorrer o que condicionou o desenho de percurso. O circuito que levaria um mês a percorrer foi substituído por outro que teve dezanove dias de duração. Mas, logo nas edições seguintes, o Tour irá marcar os contornos extremos do território da França seguindo o mais próximo possível a linha da fronteira.

A fronteira é mais do que o simples contorno que delimita o território continental da Nação, é também uma linha imaginária a partir da qual se estabelece um quadro de relações entre comunidades que se entendem como idênticas entre si, e diferentes entre elas. Logo, a intenção de fazer uma corrida de bicicletas tendo como referência os contornos da pertença à comunidade gera, por si só, sentimentos de identidade.

Quando os fundadores decidem dar o nome Tour de France à competição ciclista tinham já a intenção de o associar aos símbolos de identidade nacional porque é um nome que já estava registado na memória colectiva. A frase Tour de France foi usada pela primeira vez no século XVI com sentido político, era o nome dado ao tour que o rei de França, Carlos IX, fazia nas suas inspecções ao território. Com o desenvolvimento das viagens de lazer em França e na Inglaterra o termo tour é associado ao tourism. Ao nível literário, o historiador Jules Michelet (1796-1874) na obra Tableau de la France descreve a França sob forma de um grande tour que começa e acaba em Paris, caracteriza todas as províncias de França e incorpora nesta descrição o mito de Joana d’Arc. Uma outra referência que se supõe importante para os organizadores do Tour foi o livro estudado por todos eles na escola primária, Le Tour de la France par deux enfants de Madame Fouillée. O livro introduz as crianças no conhecimento da geografia e história da França através de uma história de dois meninos que partem, depois da morte do pai, à procura de um tio que está em constante deambulação e, desse modo, viajam por todo o país. Por último, associada ao tour estão também os devoirs, queeram sociedades semi-secretas de artesãos (carpinteiros, ferreiros, pedreiros) que viajavam de terra em terra para aprender novos métodos associados a diferentes províncias, num itinerário que poderia levar cinco anos a cumprir e que se denominava Le Tour de France. Em qualquer das referências, políticas, profissionais ou literárias, estão presentes as ideias de variedade e unidade do território francês. A expressão Volta a Portugal, pelo contrário, não tem quaisquer conotações políticas ou sociais e, à data da criação, não tem qualquer significado ou ligação ao passado histórico de Portugal como o termo Tour tem para a França.

A Volta a Portugal é concebida entre as duas Grandes Guerras, no período mais nacionalista da existência do Tour. É durante ambas as Guerras que a integridade e independência da França fragiliza e a fronteira destabiliza. Em 1919, depois de uma interrupção de quatro anos devido à I Guerra Mundial, o Tourinclui no seu itinerário as regiões da Alsásia e Lorena, recuperadas pela França no Tratado de Versailles, mostrando nesta proposta a sua capacidade de reintegração simbólica dos novos territórios na terra-mãe (Campos, 2003). Esta marcação simbólica dos territórios recuperados pela acção da Guerra é determinante para a consagração do carisma do Tour para os franceses que, doravante, o concebem como um evento patriótico nos momentos em que a unidade territorial da França é um assunto político crucial.

A fronteira do continente português, com cerca de sete séculos, “faz de Portugal a formação mais antiga e mais estável do mapa político mundial”[1]. Logo, a Volta apesar de seguir o desenho da fronteira durante, pelo menos, três décadas nunca terá o significado político para os portugueses, como aquele que o Tour tem para os franceses, porque os limites do território continental português nunca foram postos em causa.

Quando Raul Oliveira, depois de fazer parte da comitiva do Tour de 1919[2], consegue apoios para a primeira realização da Volta já o Tour é considerado um símbolo da singularidade da identidade nacional francesa tornando-se também ele numa das metáforas que compõem as histórias do manual escolar para ensinar a França aos franceses.

Para organizar a primeira Volta, o Diário de Notícias contava já com a experiência da realização de dois eventos que, apesar de distintos, têm em comum a finalidade de participar na produção e promoção da comunidade nacional, que são o Grande e Popular Concurso Riquezas de Portugal e o Circuito Hípico de Portugal, ambos levados a cabo em 1925, nos quais se sintetizam e divulgam as ideias do nacionalismo romântico desenvolvidas por literatos e publicistas no século XIX sobre o que consideram ser a identidade portuguesa.

Em caixa a mensagem do Presidente da República “As minhas saudações e votos pelo completo êxito dos briosos cavaleiros que acudiram com o seu concurso à bella iniciativa do “Diário de Notícias” para realizar o grande concurso hípico de Portugal. Manuel Teixeira Gomes

Na diagonal estão colocados, na posição cimeira, o cavaleiro da fundação a quem coube a conquista do território e a definição da fronteira, nas intermédias, todos aqueles que lutaram para a manutenção desses limites, que são os cavaleiros das justas e torneios mais o cavaleiro da Restauração e o cavaleiro que lutou contra as invasões francesas e, fora da linha de guerra, o cavaleiro arauto divino, símbolo da sacralização derivada do sacrifício do sangue exaurido na definição e manutenção da fronteira e, por último, o cavaleiro militar do Circuito que agora a vai simbolicamente decalcar.

A Volta a Portugal a cavalo serviu de teste à aceitação popular de um grande evento mediático como foi a disputa entre um militar, que usou três montadas, e um civil, José Tanganho, que ganha a prova usando para o efeito unicamente o seu próprio cavalo.

As primeiras Voltas apresentam-se como rituais de coesão da comunidade de um território vasto cujas fronteiras representam os limites da sua autenticidade e, ao mesmo tempo, a ameaça de entrada de influências que ponham em causa a sua singularidade. Todo este percurso em redor dos limites da comunidade provoca um movimento centrípeto que intensifica a produção de discursos sobre si próprios, sobre a grande comunidade cujo território a Volta percorre. O sucesso desta fórmula, adoptada e acarinhada pelo público, levará à reprovação de todos os traçados que se afastam deste ideal.

Cada edição terá o seu itinerário mas, em todas as décadas, há traçados que se afastam do percurso ideal representado pela primeira Volta de 1927.

Desenhos dos percursos da Volta a Portugal de 1927 a 2019

Enquanto ritual que anualmente se repete, a Volta só tem sequência e continuidade com o reforço do drama da competição gerada, logo nos primeiros anos da década de trinta, entre Nicolau (do S.L. Benfica) e Trindade (do Sporting C.P.). É esta disputa que fractura qualquer suposta unidade ao dividir os portugueses entre aqueles que apoiam Nicolau e aqueles que apoiam Trindade, é graças a esta disputa que, nas vilas e aldeias de Portugal continental, se divulgam os grandes clubes urbanos, nomeadamente o S.L.B. e o S.C.P. de Lisboa, e na década seguinte o F.C.P. do Porto

O Tour e a Volta, salvaguardadas as diferenças de escala na visibilidade mediática, constituem-se projectos inéditos que articulam, nos primeiros anos de existência, os recursos usados na grande narrativa histórica nacional para a construção da sua própria identidade e, depois de alcançarem o carisma que os nacionaliza, constituem-se como espaços propícios à definição da identidade da própria nação. 

Os mapas de divulgação da Volta

Os mapas usados na divulgação da Volta mostram como a história da Nação é importante para fazer singrar o evento e, uma vez tornado um evento carismático, é na orografia do país que a Volta busca a competitividade essencial para alimentar a incerteza do resultado da corrida e, desse modo, acompanhar as mudanças operadas na variação de significado da fronteira e dela prescindir para fazer vingar o ritual.

Em 1933, o mapa divulgado pela revista desportiva Stadium contem o itinerário e, nele, as figuras alusivas à singularidade de cada um dos lugares que a Volta visita. Os monumentos referenciam as cidades e as figuras típicas ajudam a diferenciar as regiões do país. Os mapas da Volta divulgam o discurso performativo de definição da comunidade nacional. Estes mapas contêm uma proposta de leitura que funde o solo com elementos da identidade nacional como os mitosfundadores, cultura e história partilhada.

Figura 5:  Mapa da Volta a Portugal de 1933 que evidencia monumentos e ícones que tipificam locais como Santarém e o campino e Nazaré e as varinas.Figura 6: Mapa da Volta a Portugal de 1939 publicado pelo DN, e reproduzido na obra de Gago (2002). Destaque dado a castelos e fortalezas.  

O mapa mostra que o tempo deixa marcas no espaço vivido e, no itinerário da Volta, revelam-se mosteiros e igrejas, campos e paisagens. As narrativas escritas, elaboradas pelos jornalistas que acompanham a prova, não deixam de fora os mitos e as histórias associadas a estes lugares contribuindo, desse modo, para a idealização da identidade nacional.

Nas primeiras décadas de existência do evento, a questão nacional, que marcou a política oitocentista, tornar-se de novo uma das prioridades do Estado Novo. Em 1933 é criado o Secretariado de Propaganda Nacional (SPN) que será transformado em 1944 no Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo (SNI), ambos dirigidos por António Ferro, o ideólogo da política do espírito de Salazar. Primeiro, o SPN levará a cabo várias iniciativas no sentido de se estabelecer um conhecimento cartográfico e histórico do país, elementos que virão a constituir um inventário e que, ao mesmo tempo, classificam e dão forma à construção da edificação discursiva da nação.

A definição da nação, nomeadamente dos elementos que a estruturam, o povo e as suas tradições, conhece assim um novo momento de síntese e fixação[3] do qual faz parte o concurso da Aldeia mais Portuguesa de Portugal[4]. Entre estes dois momentos  «(…) os homens públicos portugueses trataram de definir o que a comunidade nacional era ou devia ser e procuraram fazer com que os seus compatriotas se identificassem com essa ideia. Para isso utilizaram os jornais, os quartéis, as escolas, as associações, o turismo e toda uma complexa teia de cerimónias e rituais públicos.»[5]

A par disso, ainda na década de 30, a Revista Panorama, da responsabilidade de António Ferro, sintetiza o processo de nacionalização da cultura popular. Neste processo nem todas as tradições são inventadas mas produz-se uma versão actualizada, correcta e autorizada da “vida popular” através de um processo de selecção, categorização, reposicionamento e congelamento. A cultura popular, agora divulgada pela Revista Panorama, serve dois propósitos: por um lado, a afirmação da unidade do que é português e, por outro, de marcador de diferenças de género, de posição social e de região. O mapa da Volta a Portugal de 1939 divulga a localização dos castelos e monumentos, publicitando e popularizando o investimento político na sua recuperação. A valorização deste património está ligada com a ideia de fundação e defesa do território.

Mas mesmo esta pretensa intenção, de definição da unidade nacional, não é linear porque o evento desportivo promove uma relação cultural ubíqua com o território da Nação, i.e., enquanto promove e divulga a bicicleta (um novo modo de mobilidade) e ensaia novas formas de contacto entre grupos, instituições e lugares, promove também a ideia de cultura como algo estável, sedentário com uma existência territorial, dando relevo a uma geografia associada a marcos históricos ou então a figuras típicas, territorializando deste modo a diversidade cultural. A epítome desta ubiquidade são as figuras da fundação, quer da Nação quer de cada um dos lugares que a constituem, porque são aqueles que saem do lugar as figuras exemplares e os modelos[6]a seguir.

Estes mapas, mesmo que conotados com um certo conservadorismo, podem também ser lidos como propostas de mobilidade e descoberta. Os mapas da Volta concretizam uma pedagogia do território e elaboram, à sua maneira, o discurso dos geógrafos dando a conhecer os contornos do território e, ao contribuir para a vulgarização da cartografia, ajudam a construir o imaginário colectivo dos limites da pertença, a imagem de Portugal.


Figura 7: Mapa itinerário da VI Volta a Portugal em Bicicleta.

Gráficos alusivos à 6ª e 7ª etapas, e às 13ª e 14ª. Fonte: Diário de Noticias, 6, 25 e 30 de Setembro de 1935.

Os mapas que são publicados realizam a ligação da história à geografia quer pela fusão do solo com elementos da identidade – mitos fundadores – quer pela associação da topografia a um passado glorioso (castelos, igrejas). E, enquanto ilustram a ligação da identidade ao solo pela referência à sua história, promovem também um saber geográfico que convida ao deslocamento, mostram o solo da pertença mas, na relação que com ele estabelecem, alteram-no e oferecem-lhe outros modelos de valor tanto para a mobilidade física quanto para a mobilidade social através do novo campo de heroicidade, o ciclismo, uma grandeza à altura de todos. 

A partir da década de 50, a linguagem dos mapas altera-se indo de encontro às novas apetências, desta feita com os destinos das férias, a praia e a montanha, sem no entanto descurar aspectos típicos que apelam ao turismo. É durante a década de 60 que a venda de automóveis cresce. À ética do trabalho associam-se os momentos de lazer, primeiro com a conquista do fim-de-semana à inglesa e, depois, com o direito a férias pagas. A população nos centros urbanos cresce e do interior a população emigra.

  Figura 8: Mapa da Volta a Portugal de 1957  O “ciclista turista” que experimenta a ceifa a sul, a tourada no centro, a dança a norte, a pesca no litoral e o ski na Serra.    Figura 9: Mapa da Volta a Portugal de 1966 destaca zonas de vilegiatura e lazer – o Algarve das praias, os touros e, no interior, as montanhas

A presença das praias[7] nestes novos mapas com roteiros dados pelos trajectos da Volta, prefiguram a mobilidade estival nas estradas durante o Verão. Outra nova possibilidade de lazer é a Serra da Estrela. Praias, serra e touradas, três possíveis ocupações do tempo livre, algo que estará desfasado do quotidiano de grande parte dos portugueses. São países como a França que, seguindo a ideia keynesiana de um sistema económico orientado para a consumo e não apenas para a produção, flexibilizam a ética do trabalho com a valorização do lazer e do turismo e levam a Declaração dos Direitos Humanos a estabelecer que “toda a pessoa tem direito ao repouso e aos lazeres, especialmente a uma limitação razoável da duração do trabalho e a férias periódicas pagas”[8]. Em Portugal o direito a férias pagas é legislado em 1966, independentemente da qualidade do trabalho realizado, mas só é plenamente concretizado depois da Revolução de 1974.

Os mapas das décadas de 60 e 70 já pouco têm a ver com os das décadas anteriores e tendem a caracterizar mais os modos de vida e estão menos comprometidos com a produção de identidade nacional. Doravante os mapas da Volta centram-se ora nos aspectos concretos da prova, como é o caso do de 1973 cuja legenda distingue a natureza de cada uma das etapas – os contra-relógios, os prémios de montanha e as etapas em linha – ou então dão apenas o resumo do itinerário evidenciando indicadores associados à sociedade de consumo que já caracteriza a década de 80 com o anúncio à ITT ideal color – uma das primeiras marcas de televisão a cores. Os mapas mais recentes são objectos de design informático, comprometidos com a publicidade aos patrocinadores, ou tão só soluções gráficas criativas que mostram o território de cada etapa em perspectivas tridimensionais.


Figura 10: Mapa da Volta a Portugal de 1973 Record 7/8/1973

Figura 11: Mapa da Volta a Portugal 1981 Publicado no Livro Oficial da Volta – com a publicidade ao ITT ideal color.

Os mapas da Volta, nos primeiros anos, imaginam o território, constituem-se numa lição de história e de geografia e, ao mesmo tempo inserem-se no que Billing (1995) denomina de “nacionalismo banal”, por oposição ao nacionalismo semântico de António Ferro cuja acção exigiu um movimento cultural e económico que reivindicava de forma explícita uma mudança ao nível da política do espírito da nação. O nacionalismo semântico de Ferro, sem a hegemonia da nação e sem os instrumentos do Estado para perpetuar essa hegemonia, sucumbe, enquanto as formas de nacionalismo banal tendem a adaptar-se porque não se prendem a agendas políticas tão definidas. A Volta a Portugal em bicicleta situa-se entre estes dois conceitos porque só é tornada possível através de iniciativas que combinam o político, o económico e o cultural e, ao mesmo tempo, promove explicitamente o “nacionalismo banal”.

A alteração pictórica dos mapas que anunciam a Volta é um indicador do valor do solo nas questões da identidade, i.e., a nação tende a ser imaginada a partir de referências que variam ao longo do tempo mostrando que a identidade não é algo fixo mas, sim, algo em constante transformação. Este tipo de eventos desportivos mostra como o território da nação é um elemento importante na imaginação da comunidade bem como na definição da sua identidade.

Os itinerários da Volta

Ao longo dos últimos oitenta anos ocorreram redefinições das fronteiras do país: económica, política e administrativa. As fronteiras da Nação redesenhadas para se adaptar às novas conjunturas económicas e políticas vão, com a descolonização, dilui-se e acompanhar as necessidades de criação de grandes espaços políticos de flexibilização e fluidez das trocas económicas e da migração humana. Estas alterações devem também ser interpretadas em função da geografia de cada um dos países e, no caso da França, a centralidade da geográfica do seu território facilitou a intenção da internacionalização do itinerário do Tour que acompanhou o alargamento das fronteiras ao espaço mais vasto dos países da União Europeia.

Figura 12: Tipologia do traçado dos itinerários da Volta

As primeiras voltas procuraram unir todos os locais, definir os limites da unidade que se propalava e, neste esforço, as cidades do interior situadas nesses limites são praticamente todas contempladas pelo desenho do itinerário. Entre 1955 e 1965, a crescente popularidade do ciclismo e o aparecimento de novas pistas como a de Alpiarça, a de Loulé e a de Sangalhos marcam anos de prosperidade para os clubes de ciclismo, maioritariamente situados no litoral a Norte de Lisboa. Os itinerários mostram desenhos cheios de pequenos laços que correspondem a etapas em circuito feitas em torno destas vilas e que acabam em festivais de pista. Para além dos pequenos laços, a Volta “é mastigada junto ao litoral e despachada no interior”[9]. É no litoral que se situam os centros de desenvolvimento industrial, alguns deles já associados também à produção das bicicletas.

A partir dos anos 60 a identidade dos itinerários caracteriza-se por alguma indefinição porque têm de incluir, em simultâneo, lugares que de prática do ciclismo, onde estão os velódromos e as pistas nas quais se realizam os festivais que financiam a prova, e lugares com montanha, com percursos que promovem a incerteza do resultado desportivo e garantem a promoção mediática do espectáculo. O problema para os organizadores é o facto de não existirem vilas no alto da Serra da Estrela que sustentem a prova, como é o caso do Alpe d’Huez em França. A etapa das Penhas da Saúde entra para o percurso em 1968, a da Torre em 1971 e, por último, a da Srª da Graça em 1979 (em 1978, acaba em Mondim de Basto e não sobe o Monte Farinha). A identidade da Volta liga-se, agora, mais à geografia do território do que à história na nação.

Entre 1966 e 1973, o traçado da Voltapassa a ter identidade própria e deixa de estar comprometido com os contornos simbólicos da pertença ao território nacional, facto que em França já acontecia desde 1950[10]. Os novos traçados, caracterizados por grandes diagonais têm como corolário passar em novos lugares mantendo, no entanto, cidades como Lisboa e Porto com lugar cativo no território da Volta.

A década de 70 fica marcada a nível político interno pela revolução do 25 de Abril e o início da descolonização e, a nível externo, pela primeira crise do petróleo que provocou um período de recessão económica mundial. O território nacional redefine-se e a nova fronteira deixa, então, «de seguir o traçado geográfico, histórico, político, defensivo e administrativo, conhecido de séculos, para acompanhar as necessidades de criação de grandes espaços políticos, de defesa e de mercado, de flexibilização das trocas e dos factores de produção, da fluidez financeira, de mobilidade humana e de rapidez das comunicações de todo o género.»[11] Após o 25 de Abril a Volta afasta-se dos grandes centros urbanos, lugares dos acontecimentos políticos maiores, locais onde se situa a academia que vê no evento desportivo o ópio do povo que o afasta da luta de classes, algo mais universal. No entanto, existem figuras como Joaquim Agostinho que fazem parte de uma estrutura sentimental comum que não se apaga com a Revolução, a Volta prossegue com dificuldade e do itinerário saem, pela primeira vez, as grandes cidades de Lisboa e Porto.

Durante as duas décadas seguintes, já com a organização do Jornal de Notícias o itinerário é de facto uma proposta inédita e de maior investimento no Norte do país, com seis Voltas a evitar a travessia do Alentejo e, variando as alternativas, contemplando sempre a região de Trás-os-Montes. A estas opções de traçado, de certo modo, não é alheio o território de implantação das vendas do jornal. Com a inclusão da Volta no quadro da competição internacional da UCI, o evento tem agora de obedecer a um Regulamento que, em primeiro lugar, obriga a um dia de descanso por cada dez dias de prova o que irá condicionar a extensão do itinerário.

O itinerário composto por territórios fragmentados é regulamentado pela UCI, é economicamente dependente da capacidade financeira dos municípios que compram as partidas ou as chegadas das etapas e, ao nível desportivo, é constituído por percursos que exigem um ritmo rápido que têm de evitar etapas de ligação monótonas.

A comparação entre a Volta e o Tour revela uma escala de sentido ligada com a centralidade da geografia, com o poder das topografias, como são o caso da Srª da Graça, em Mondim de Basto, e da Torre, na Serra da Estrela, e, a um outro nível, na topografia do poder do Tour no contexto da centralidade geográfica da França no território europeu.

O facto da corrida, em 2007, começar em Londres, e também ter etapas nos países vizinhos, dá ainda maior ênfase à centralidade da França porque evidenciam a entrada e a saída do seu território, tornam-no central no estabelecer de relações de vizinhança. A internacionalização do Tour amplia o foco mediático na França. E, como sublinha Vigarello (1992: 892) «com o Tour triunfa a imagem desta França unificada pelo solo, imagem popular, mais forte sem dúvida do que aquela propalada pela língua e seus costumes. Uma valorização muito particular da geografia.» É o solo que simbolicamente produz o significado da diferença da nação francesa e é também através dele que o ritual promove a ligação emocional do sentimento de pertença nacional.  

2.    As festas da Volta e o projecto económico do Tour

 No inicio do século XX são os jornais desportivos que promovem, divulgam e organizam as principais provas desportivas. O L’Auto inventa o Tour de França em 1903, La Gazette dello Sport cria o Giro de Itália em 1909, depois em 1927 surge a Volta e, por último, em 1935, será também o diário Informaciones a organizar a Vuelta de Espanha.

 O TourIl GiroA VoltaLa Vuelta
Data 1ª realização1-19 de Julho 190313-20 de Maio 190926 Abril a 15 Maio 192729 Abril a 15 Maio 1935
Organizador  L’Auto  La Gazzetta dello SportOs Sports e Diário de NotíciasInformaciones
Interrupções1915-1918 1940-19461915-1918 1941-19451928-1930 1936-1937 1942-1945 1953-1954 19751937-1940 1943-1944 1949 1951-1954
Nº de etapas Km da corrida6 etapas 2 428 Km8 etapas 2 448 Km18 etapas 1 958 Km14 etapas 3 425 Km
Cidade partida  Paris  MilãoLisboaMadrid
Nº de corredores601273750

Tabela 1: As quatro principais Voltas Nacionais

O Tour de França, Il Giro de Itália, A Volta a Portugal e La Vuelta a Espanha.

A invenção do Tour decorre da competição pela liderança nas tiragens travada entre o L’Vélo e o L’Auto. Desgrange tem a ideia de realizar o Tour de França e, a 19 de Janeiro de 1903, anuncia no L’Auto a sua criação e publica o seu itinerário. O vencedor do Tour teria o prémio de 3000 francos, o equivalente a vinte salários mensais de um operário da época. Perante a resistência dos ciclistas em se inscreverem, dado o grande número de dias da prova, os organizadores tiveram de garantir o salário médio aos primeiros 50 ciclistas que acabassem a prova, que era de cinco francos por dia (Boury, 1997: 54).

Em Portugal, o anúncio da realização da Volta a Portugal provoca nos jornais concorrentes, o Sporting e O Sport de Lisboa, uma reacção de crítica que se estende à U.V.P. por ter dado apoio oficial à realização da prova. Os contornos deste conflito podem ser seguidos nestas publicações, até ao fim da realização da Volta.

As críticas à U.V.P. sobem de tom à medida que a data de realização do evento se aproxima e o jornal faz notar que um dos motivos de realização da Volta será o aumento da venda do número de jornais e, também, o de bicicletas. Motivos que estão também intimamente ligados com a criação do Tour[12]. E esta ligação do espectáculo desportivo a trocas comerciais é alvo de condenação porque o ritual da competição desportiva está imbuído do ethos amador britânico que Pierre de Coubertin propaga como um dos princípios morais da competição olímpica. As corridas de bicicletas serão apenas das primeiras competições desportivas a mostrar, ainda que veladamente, a potencialidade económica associada à emoção produzida pelo seu espectáculo.

O domínio da produção do espectáculo gera disputa e rivalidade entre os jornais a tal ponto que, em 1927, se assiste não a uma volta a Portugal mas a duas voltas, uma realizada em Abril pelos jornais Os Sports e pelo Diário de Notícias com o apoio da estrutura federativa e outra, logo a seguir, em Maio, pelo jornal Sporting do Porto. Na competição entre espectáculos apenas a Volta realizada pelo Os Sportse o Diário de Notíciassucede como ritual que dura há oitenta anos.

A organização do Tour, por oposição à da Volta, caracteriza-se por uma grande estabilidade ao nível das entidades responsáveis pela sua produção, i.e., foi sempre organizado pela estrutura mediática que o inventou, que começa no jornal L’Auto e, nos anos 40, passa a chamar-se L’Equipe para, em meados de 60, ceder os direitos ao Grupo Amaury. As alterações de produção do Tour fazem parte de um plano estratégico que sempre visou a sua rentabilidade económica e o aumento de competitividade da prova desportiva; um dos marcos decisivos da economia do Tour foi a invenção da caravana publicitária que veio a tornar-se ela própria também um espectáculo que anima o público antes da passagem do pelotão.

Entidades organizadoras do Tour de France e datas de interrupção  
L’Auto – Henri Desgrange1903-1915
Interrupção – I Guerra Mundial
L’Auto – Henri Dresgrange1919-1935
L’Auto – Jacques Goddet1936-1939
Interrupção – II Guerra Mundial
L’Equipe – Jacques Goddet1947-1965
Grupo Amaury – Jacques Goddet e Félix Lévitan1966-1987
Grupo Amaury – Jean-François Naquet-Radiguet1988
Société du Tour de France – Jean-Marie Leblanc1989-2005
A.S.O. Amaury Sport Organization (1992) – Christian Proudhomme2006-2008

Tabela 2: Entidades responsáveis pela produção do Tour de France. Fontes: Boury (1997), Bouef & Léonard (1998), Reed (2003: 103-127), Lagrue (2004).

A Volta, em setenta edições, já foi organizada por doze entidades distintas. Foram os jornais Diário de Notícias e Os Sportsque a criaram e asseguram a sua realização até 1939; o Clube de Campo de Ourique (CACO), vai tomar a cargo as edições de 1940 e 1941. Logo a seguir à II Guerra segue-se o período de maior instabilidade e em sete anos muda cinco vezes de organizador. A U.V.P.-F.P.C. é a entidade que nos anos de maior dificuldade económica se encarrega de organizar o evento evitando a sua interrupção. É o Jornal de Notícias (JN) quem até à data conseguiu oferecer maior período de estabilidade tendo organizado a Volta entre 1982-2000.

Entidades organizadoras da Volta a Portugal e datas de interrupção  
Diário de Notícias e Sports – Raul Oliveira1927
Interrupção
Diário de Notícias e Sports – Raul Oliveira1931-1935
Interrupção – Guerra Civil de Espanha
Diário de Notícias e Sports – Raul Oliveira1938-1939
C.A.C.O. (Clube Atlético de Campo de Ourique) – Raul Oliveira1940-1941
Interrupção – II Guerra Mundial
Diário de Notícias e Mundo Desportivo – Raul Oliveira1946
Sport Lisboa e Benfica – Raul Oliveira1947
UVP-FPC – Raul Oliveira1948-1949
Diário do Norte – Raul Oliveira / Rodrigues Teles1950-1951
Diário do Norte e Norte Desportivo – Anacleto da Ponte1952
Interrupção – Falta de organizador
UVP-FPC e Mundo Desportivo – Anacleto da Ponte1955
UVP-FPC – Anacleto da Ponte1956-1957
Diário Ilustrado – Justino Lopes1958-1960
UVP-FPC1961-1964
Diário de Notícias, Jornal de Notícias e Mundo Desportivo1965
UVP-FPC1966-1970
Sonarte/Publirama – G.P. Robialac1971-1973
UVP-FPC1974
Interrupção – pós 25 de Abril de 1974
UVP-FPC1976-1981
Jornal de Notícias – Serafim Ferreira1982-2000
PAD (Produção de Actividades Desportivas) e Unipublic (empresa organizadora da Vuelta)2001-2002
PAD/João Lagos Sport – Joaquim Gomes2003-2008

Tabela 3: Entidades responsáveis pela produção a Volta a Portugal.

Fonte: Diário de Notícias.

Acabado o contrato com o JN, a Federação coloca em concurso a organização do evento, e o JN perde a posição para a empresa Produção de Actividades Desportivas (P.A.D.) que, por sua vez, se unirá à Unipublic (empresa organizadora da Vuelta) para conseguir assumir o compromisso com a Federação. A Federação cede os direitos da organização da Volta mas, em troca, a entidade que se encarrega de a organizar tem também a seu encargo um conjunto de outras provas que não são rentáveis devido à falta de interesse da maioria dos patrocinadores nas mesmas. Em 2003, já com dificuldades em suportar os encargos inerentes à realização desse pacote de provas extra, a empresa cede 80% do seu capital à João Lagos Sport, uma empresa vocacionada para a produção de eventos desportivos.

Enquanto que a organização do Tour é um projecto empresarial, assumido desde a sua criação, a Volta, até à década de oitenta, deve a sua continuidade a uma convergência de interesses e voluntariado que a transforma no maior projecto colectivo do ciclismo. Logo na primeira edição, os Grémios de turismo regionais, aliados dos jornais organizadores, conseguem desencadear processos múltiplos de angariação de apoios a nível local e, desse modo, garantir fontes de financiamento diversas, se bem que esparsas, algo efémeras e cuja continuidade só é assegurada pela manutenção de contactos e de interesses, por parte de todos estes intervenientes, na realização do evento.

A realização da primeira Volta a Portugal foi um banco de ensaios em termos económicos, mas os encargos terão sido de tal ordem que, não obstante a popularidade alcançada, os empreendedores só conseguiram repetir o evento quatro anos mais tarde, em 1931.

Ao analisar os aspectos da economia do Tour, durante um século de existência, Reed (2003) observa que o primeiro Tour assenta numa estratégia combinada e economicamente suportada pelo jornal L’Auto com os fabricantes de bicicletas. Com uma função comercial muito evidente, o primeiro Tour começa por fazer aumentar a venda de jornais e de bicicletas. Os primeiros anos do Tour caracterizam-se pelo que Reed (2003) denomina de corporate team formula entre os jornalistas do L’Auto e os fabricantes das bicicletas: os jornalistas escolhiam as equipas, os patrocinadores, o itinerário, as regras da competição e o equipamento para a organização do evento; os fabricantes de bicicletas patrocinavam as equipas, forneciam as bicicletas e pagavam a publicidade. As duas indústrias trabalham juntas de modo a promover aquilo que se tornará um dos maiores espectáculos de entretenimento desportivo. Esta equipa será a grande impulsionadora do Tour durante quase duas décadas.

A repetição anual do Tour requer dos organizadores estratégias de renovação para manter o interesse e a cobertura dos media. E o sucesso do Tour será garantido pelo incremento da competitividade da corrida que, por sua vez, conduz ao aumento da cobertura dos media e maior exposição dos patrocinadores. Todas as alterações implicaram a revisão sucessiva das regras, alterações nos regulamentos e modificações dos itinerários. A invenção da camisola amarela em 1919, da cor do jornal L’Auto, e o uso de bonés amarelos para os da mesma equipa do ciclista que leva a camisola amarela, é uma dessas estratégias que ajudam a orientar o público no entendimento da corrida, ou seja, distinguir no pelotão não só o ciclista que nesse momento é vencedor como a equipa da qual ele faz parte. A invenção do contra-relógio, em 1922, é a novidade que renova o espectáculo. Estas inovações inserem-se na lógica de ampliação de exposição comercial que terá na cobertura radiofónica em 1929 um meio de ampliar a difusão desse mesmo espectáculo (Reed, 2003). A regularidade da realização do evento exige alterações sucessivas para assegurar o sucesso do espectáculo.

Nos anos vinte as equipas mais abastadas monopolizavam os melhores corredores e controlavam os resultados da corrida. Em 1929, Desgrange decide acabar com a manipulação da prova, por parte dos industriais, e altera o modelo desportivo, bem como a estrutura de financiamento do evento. Abandona o corporate team formula e adopta o national team formula passando a ser o jornal a convidar os melhores ciclistas e a organização destes em equipas nacionais (Reed, 2003). A formação de equipas nacionais é inspirada no modelo dos Jogos Olímpicos.

O L’Auto passa a oferecer e a gerir toda a logística da prova incluindo as bicicletas e respectivo apoio mecânico. Para suportar estes novos encargos altera a estrutura financeira que será agora suportada por novos patrocínios e subsídios das cidades anfitriãs. E, de modo a superar a precariedade e efemeridade de parte destes subsídios e como forma de evitar a dependência das cidades no desenho do itinerário, em 1929, será também criada a Caravana Publicitária. A Caravana revelar-se-á a inovação mais significativa não só no financiamento da prova como também nas alterações que promoverá à natureza do espectáculo do Tour.

A Caravanacaracteriza-se por um sortido de veículos que desfila, pouco antes da corrida, de cidade em cidade anunciando os seus produtos. As empresas providenciavam os veículos e pagavam uma taxa ao L’Auto para se juntarem à Caravana. Deste modo, Desgrange passa a dispor de uma fonte de financiamento proveitosa que ajuda a garantir autonomia da organização face aos interesses dos industriais de bicicletas.A Caravana torna-se ela própria um espectáculo e uma fonte de animação para os espectadores.

O sucesso da nova estrutura de financiamento levou a um aumento substancial dos prémios sendo o prémio do vencedor da corrida um bom exemplo disso: passa de 10.000 francos em 1929 (equivalente a 5 000 euros actuais)[13], para 200 000 francos em 1937 (Reed, 2003).

Em Portugal, ainda durante os primeiros anos, na década de 30, nos quais o espectáculo estava garantido pelos ciclistas do Cartaxo, José Maria Nicolau e Alfredo Trindade, a Volta esteve em risco de não ser organizada, devido entre outras razões, a exigências financeiras feitas pelos três grandes clubes: Sporting, Campo de Ourique e Benfica. E são as notícias publicadas por jornais concorrentes que dão a perceber os contornos do conflito.

(…) Como reflexo das nossas queixas e reclamações anteriores, foi prometido por V. Exª de que o clube não gastaria importância alguma com a hospedagem e alimentação dos corredores, (…). E do seu cofre (SLB), saíram para cobrir os encargos provenientes da representação do Benfica na prova organizada e regulamentada por V. Ex.ª, as seguintes importâncias: indemnização por salários perdidos, 3.790$00; equipamentos, segundo as exigências do regulamento da prova, 2.792$50; num total de 9.148$70.

O Século, 19 de Agosto 1933

O conflito com os principais clubes irá ser apaziguado por dois anos de interrupção devidos à Guerra de Espanha.

Projectava-se uma interessante organização ferroviária para alojamento de a caravana nas localidades escolhidas para finais de etapa, a qual seria ainda aproveitada para desenvolver uma activa campanha de publicidade de êxito assegurado. Preparava-se o comboio da Volta para cuja composição tínhamos concluído negociações com a CP que diga-se de passagem acolheu a iniciativa com o maior entusiasmo e tudo se conjugava de modo a rodear a Volta de um programa a todos os títulos sensacional. Surgiu entretanto o conflito espanhol e a ideia teve de ser posta de parte. Não só se verificou a impossibilidade de organizar o Comboio da Volta visto a maior parte do material ter de vir de Espanha como também um dos jornais promotores da grande corrida, o Diário de Notícias, ficou impossibilitado de dar a reportagem o relevo que ele [o dito comboio da Volta] merecia.

Os Sports, 10 de Agosto de 1936

Em 1940, a empresa do Diário de Notícias, em reestruturação, entrega os direitos de realização ao Clube Atlético de Campo de Ourique (CACO).

O período do pós II Guerra (entre 1946-1952) é aquele que se caracteriza por maior instabilidade ao nível da organização e é também, ao mesmo tempo, o indicador do valor e significado social que a Volta já tinha adquirido, dado o número de instituições que se dispõe a organizar o evento. Em sete anos a Volta terá cinco organizadores distintos. É a valorização social da Volta que lhe garante a sobrevivência e pode ser lido no esforço consentâneo de vários grupos que, em cada uma das cidades, apoiam os sucessivos organizadores.

As diferenças entre Portugal e França após a segunda Guerra são grandes e, no esforço da reconstrução do país, o Tour viveu o que Boury (1997) denomina de Trinta Anos Gloriosos. Em Portugal, pelo contrário, apesar do crescimento do número de casas de ciclismo[14] e do número de licenças[15], o ciclismo de competição atravessava uma grave crise por causa das dificuldades económicas por que passam os clubes e a própria Federação. Os jornais acrescentam que as dificuldades vividas pelo ciclismo se devem também às exigências dos ciclistas sobre os prémios a ganhar e, sobretudo, à falta de instalações apropriadas capazes de captar a rentabilidade de um espectáculo que tanto agradava ao público[16].

Depois da guerra, é o automóvel que toma, gradualmente, o lugar da bicicleta enquanto símbolo de mobilidade e liberdade pessoal. As indústrias de bicicletas, em crise, deixam de ser o sporte de  muitas das equipas profissionais. Uma vez mais, a estrutura de financiamento e a natureza do Tour vai ser repensada, dada a crise da imprensa escrita e do próprio ciclismo, para delinear a filosofia a seguir na realização do evento.

A repetição da Volta a Portugal assenta mais no sucesso crescente do ritual do que numa qualquer estratégia económica até porque apesar dos jornais se promoverem com a realização do evento não conseguem fazer do espectáculo um projecto lucrativo como o Tour é para o L’Auto. Na década de 40, o ritual sucede mesmo no contexto de instabilidade da entidade que o organiza. Em dez anos passa por cinco organizadores distintos, entre eles a Federação que evita a sua interrupção sempre que falham entidades voluntárias dispostas a organizar a Volta.

Entre 1947 e 1949, o Tour entra em crise porque as vendas de jornais não compensam a produção do evento. A relutância dos organizadores face às novas possibilidades de promoção do Tour faziam Goddet resistir à pressão das grandes corporações em retomar o team race formula. Ele receava que a alteração da estrutura publicitária seguida até ali, e a estrutura financeira tal qual havia sido concebida por Desgranges, pudesse levar ao descontrolo na comercialização do evento e à degradação do carácter cultural da corrida. Além do mais, os críticos do Tour apontavam o carácter publicitário do evento como o primordial do espectáculo em vez da competição desportiva. O percurso descendente da indústria das bicicletas e dos próprios jornais é acompanhado de um crescer de novas empresas (extra-desportivas) interessadas na auto-promoção através do apoio a equipas e eventos desportivos de projecção internacional (Reed, 2003).

Em 1955 a Federação Francesa de Ciclismo, ao mudar os seus estatutos, permite o uso de publicidade de marcas extra desportiva nas camisolas e nos calções. Durante quinze anos Goddet lutou contra o interesse das empresas extra-desportivas em financiarem o evento com receio de virem a manipular a competição e a corrida, como havia acontecido na década de vinte, levando à degradação da competitividade e da combatividade da corrida e destronando o interesse popular do Tour.

A pressão exercida pelas grandes corporações vai destronar o ideário de Goddet que via no national team formula todo um paralelismo com o ideário de Coubertin aplicado aos Jogos Olímpicos. Em 1961, Poulidor que é um dos heróis do ciclismo e do Tour faz o Giro de Itália mas não participa no Tour de France devido ao compromisso assumido com o patrocinador da sua equipa. Em 1961 a competitividade do Tour decresce e Goddet é forçado a ceder e a voltar às três primeiras décadas do Tour ao instituir de novo o corporate team formula desta feita já não associada aos industriais das bicicletas mas a outras corporações que nada têm a ver com o ciclismo ou com o desporto. O regresso ao corporate team formula não voltaria, no entanto, a ter o molde das primeiras décadas porque a transmissão televisiva da corrida fez crescer exponencialmente o poder promocional do evento (Lagrue, 2004).O espectáculo desportivo televisivo alterou a razão de ser comercial do Tour (Reed, 2003) mas não tanto a da Volta. Em França é a TV que paga direitos de transmissão à empresa que produz o Tour, enquanto em Portugal é a entidade organizadora que paga à RTP para transmitir a prova.

Durante as décadas de 50 e 60 o financiamento da organização da Volta assenta na rentabilidade dos espectáculos dos festivais de pista que se organizavam, antes das chegadas da Volta, tanto nos velódromos como nos estádios que, na época, ainda tinham entre o relvado e as bancadas, a pista de ciclismo.

É na década de 60 que o Diário de Notícias organiza pela última vez a Volta e cede, definitivamente os direitos da sua organização à Federação Portuguesa de Ciclismo. Um dos problemas que as sucessivas organizações encontravam era a falta de alojamento para a comitiva e o D.N. irá resolver o problema com o campismo, algo que já Raul Oliveira tinha experimentado em 1939. A repetição da experiência, quase trinta anos depois, em 1964, supõe que ao nível logístico pouco teria mudado em Portugal e que a precariedade se mantinha. A edição de 64 vai então ficar conhecida como a Volta das Barracas.

Em Portugal, é no fim da década de 60 que se dão mudanças significativas na relação do espectáculo com o interesse comercial por parte das empresas que, com o protagonismo assumido por Joaquim Agostinho, vêm nele o veículo para a divulgação dos seus produtos. É no interior desta nova lógica comercial que as empresas privadas se inserem, tanto na criação de equipas como na organização da própria Volta. Por um lado, empresas como a Ambar (artigos de papelaria) e a Coelima (têxteis) investem na criação de um Grupo Desportivo que é o suporte de uma equipa de ciclismo, que participa na Volta a Portugal até 1977. E, por outro, a Sonarte/Publirama começa a organizar a própria Volta em 1971 mas abandona o projecto no ano da Revolução de 1974. É também durante estes anos que a publicidade é autorizada na roupa dos ciclistas e as próprias camisolas dos vencedores das etapas passam a ter o nome dos patrocinadores que oferecem esses prémios. Na década de setenta os grandes clubes abandonam o ciclismo com a justificação de falta de meios para sustentar as respectivas equipas que, doravante, passam a ser projectos patrocinados por empresas extra-desportivas.

Em 1974 os apoios empresariais falham tanto no apoio às equipas como na realização do evento e é, de novo, a Federação Portuguesa de Ciclismo que assegura a sua organização até 1982, ano em que será cedida ao Jornal de Notícias.

Entre 1982 e 2000 a organização da Volta passa por um período de estabilidade a cargo do Jornal de Notícias (JN), do Porto, sob a direcção de Serafim Ferreira, tendo nos primeiros anos a colaboração de Jorge Lara, um homem do JN que também estava na Federação e já havia realizado outras Voltas. O principal suporte publicitário do evento é o próprio jornal, um diário generalista de grande tiragem, e a principal fonte de financiamento são já as Câmaras Municipais, que pagam cada uma das etapas. A televisão, contrariamente ao que acontece com o Tour, sempre foi parceira das organizações da Volta mas nunca conseguiu patrocinar o evento.

O contrato acabava em 1999 mas, nele existia uma cláusula que permitia que se prorrogasse por mais um ano. A Volta de 2000 ainda é organizada pelo J.N. mas já no contexto de uma contenda judicial contra a Federação Portuguesa de Ciclismo. Em 2001, a Volta deixa de estar a cargo do Jornal de Notícias e a Federação Portuguesa de Ciclismo atribui a sua organização à Produção de Actividades Desportivas (PAD), criada para promover eventos de ciclismo. Em 2003 a Lagos Sport adquire 80% do capital da PAD e organiza pela primeira vez a Volta a Portugal e, logo nesse primeiro ano, é alterada a arquitectura do espaço do evento.

Um dos aspectos que diferencia a João Lagos Sport dos anteriores organizadores da Volta é a atenção dada ao espaço informal gerado pelo próprio evento. A informalidade e a personalização das relações entre os organizadores e respectivos patrocinadores sempre aconteceu, mas sem um espaço próprio, sem se constituir o próprio espaço de convívio como um valor em si mesmo. Se, por um lado, a João Lagos Sport concebe espaços para o encontro informal entre as empresas que patrocinam o evento e respectivos clientes, por outro, formaliza com os seus patrocinadores contratos que garantem não só a continuidade como o planeamento com maior antecedência dos seus espectáculos desportivos.

O evento facilita, em cada lugar que adquire a partida ou chegada de uma etapa, o contacto e o fortalecimento de laços entre as entidades oficiais e as entidades empresariais privadas. As contrapartidas oferecidas pela Volta são de visibilidade para o concelho, para a localidade, dada pela transmissão da corrida e também pelo programa Há Volta.

O planeamento do Volta envolve relações económicas particulares com empresas e autarquias que, a cada nova edição, reafirma não apenas a economia de cada um dos grupos como reforça a rede de trocas económicas que suportam a organização do evento.

Com a transmissão televisiva o Tour ganhou autonomia financeira que lhe garante poder de decisão do seu próprio itinerário não prescindindo, no entanto, das contrapartidas dadas pelos lugares de paragem das etapas. Em Portugal, a organização da Volta paga à RTP para realizar o directo da prova. O itinerário da Volta é desde logo caucionado pelo espaço concelhio dos municípios que o patrocinam. A hierarquia que, ao nível do espectáculo, se estabelece entre o Tour e a Volta reside também nos limites da difusão das imagens televisionadas porque a economia da produção do próprio evento depende da amplitude do espaço mediático da sua difusão. Quando maior for este espaço maior a competitividade entre as empresas para nele se fazer anunciar, logo, maior o valor dos patrocínios colocados ao dispor da produção do próprio evento.

O Tour, liberto das franquias locais, concebe itinerários que começam em capitais de países vizinhos e terminam sempre Paris. É um ritual que se organiza para celebrar uma comunidade mais vasta. O Tour é um ritual de celebração da França e dos franceses visualizado à escala global. O ritual da Volta celebra a comunidade portuguesa no interior do espaço internacional da difusão da RTPi para espectadores que entendam português.

A internacionalização do Tour proporciona mais poder económico à difusão do evento que o torna o centro de trocas entre corporações transnacionais. Na Volta os maiores investidores estão indirectamente ligados ao Estado português, constituído por um conjunto de edilidades cujo orçamento é provisionado pela tributação dos impostos. A Volta providencia uma circulação de bens e de trocas económicas no interior da própria comunidade que se celebra no ritual e que de si dá conta também só para si própria.

3.    O espectáculo mediático e os seus heróis

Figura 13: Poster com José Maria Nicolau e Alfredo Trindade. Espólio das reservas do antigo Museu do SLB.

 As primeiras décadas caracterizam-se por itinerários fechados, extensos, circulares e, nestes, a produção na corrida nem sempre é consonante com as necessidades de competitividade porque a velocidade depende das características da bicicleta que, por sua vez, não é indissociável das qualidades físicas do ciclista. A bicicleta pesada das primeiras Voltas necessita de ciclistas robustos, corredores fortes como José Maria Nicolau que anda na frente do pelotão na solidão do território vasto da corrida e, isolado, ganha a disputa. Quando Trindade, um homem pequeno e franzino, ganha a Nicolau, os aspectos que em tudo negariam a excelência tornam-se os atributos que fazem dele um fenómeno do ciclismo.

São as notícias publicadas pelos jornais que divulgam os seus feitos. A produção e publicação da notícia, durante estas primeiras Voltas, é também uma aventura dada a precariedade das comunicações e a assimetria de desenvolvimento, verificada entre o interior e a região litoral a Norte de Lisboa que tinha mais e melhores estradas e transportes de ligação entre as principais cidades. A Volta demora mais de vinte dias a realizar-se e, este tempo longo, é essencial para fazer chegar as notícias da corrida a um público que as espera nas principais praças das cidades, onde são afixadas e há sempre alguém pronto para as ler a todos aqueles que não o sabem fazer. Para o jornalista o meio mais rápido de comunicar com a redacção é o telefone pelo qual dita a notícia como se tratasse de um directo da corrida a que, supostamente, estaria a assistir. Entretanto a corrida decorre, longe do local onde acontece a simulação deste directo. Os telefones situam-se nos postos públicos das vilas, nos cafés e nos correios e, uma vez lá, têm que esperar a sua vez porque são muitos os jornalistas que aguardam a chamada da redacção. Todas as chamadas estavam já previamente combinadas e aconteciam de acordo com uma agenda elaborada antes da partida para a Volta.

Sobre a corrida pouco se sabia mas para a narrativa de cada etapa entravam não só os pormenores da disputa, muitas vezes inventados, como também o pó e os buracos da estrada e, ainda, a descrição da pobreza lúgubre dos lugares que era feita de forma tão realista que confundia os censores que a deixavam publicar. Por seu turno, a imagem fotográfica sujeita-se a um tempo mais longo antes da sua publicação já que os rolos tinham de ser enviados por camioneta ou comboio e  as ligações aos centros urbanos dependiam de região para região. A fotografia, por este motivo, obedece a uma economia especial para conter tudo aquilo que é o essencial da corrida, da paisagem e também do público.

É a multidão que objectiva o sucesso e a emoção vivida na etapa. E é a incerteza gerada pela rivalidade entre Trindade e Nicolau que alimenta o espectáculo, que gera ansiedade e faz a multidão  esperar pelas notícias da Volta, nomeadamente, na praça do Rossio, da qual os próprios jornais fazem notícia ao publicarem fotografias dessas esperas, algo que virá, inclusivé, a ser alvo de sátira  com a seguinte anedota[17]:

Figura 14: Um Motivo Grave… -Vinha pedir se o patrão me concedia dezassete dias de licença… -Porquê?! Sente-se cansado ou vai para “as águas?! -Não senhor! É para passar as tardes no Rossio à espera de notícias da Volta a Portugal…  

Trindade vence o Campeonato Nacional dos 1000 metros em 1928 e o Circuito de Alcobaça. Em 1931 corre pela primeira vez na Volta e fica em 2º lugar. No ano seguinte, ainda na equipa União Ciclista Rio de Janeiro, vence José Maria Nicolau e fica em primeiro lugar na Volta. Viaja até ao Brasil e participa no Grande Prémio da Federação Ciclista Brasileira e, ainda em 1932, fica em segundo lugar nas provas de maior destaque como o Lisboa-Porto e as Doze Voltas à Gafa. Em 1933, repete o feito e ganha de novo a Volta, com a vitória em 8 etapas e vestindo a Camisola Amarela em 17 das 18 etapas. Até 1937 fica sempre classificado nos primeiros lugares nas provas de referência e, ainda neste ano, irá de novo ao Brasil[18]. José Maria Nicolau ingressa no Sport Lisboa e Benfica em 1929, vence a Volta a Portugal em 1931 e 1934 e ganha por três vezes a Alfredo Trindade o Porto-Lisboa[19]. Nascidos em 1908, ambos os ciclistas são de Valada do Ribatejo e ambos saem da agricultura para as corridas de bicicleta.

Nicolau é admirado por puxar por todos e mesmo assim ganhar, e Trindade por ser pequeno e, apesar disso, ganhar a Nicolau. Nestes primeiros anos o homem sujeita-se à máquina, é uma luta desigual que o faz vergar-se ao seu ritmo e aos seus sucessivos empanes. O corpo é entendido como uma natureza e na competição, de acordo com as leis da natureza, ganha o mais forte.

As bicicletas são melhoradas mas o mau estado das estradas não torna visíveis os progressos mecânicos obtidos com a introdução de mudanças mas, de qualquer modo, favorece os homens mais fracos nas disputas. Trindade ao vencer Nicolau põe em causa a lei do mais forte, ele poupa muito esforço porque corre sentado, é na relação particular que estabelece com a bicicleta que poupa as suas forças e ganha a Nicolau. Trata-se aqui de sublinhar a importância da tecnologia a começar pela técnica com que é usado o próprio corpo. E ciclistas como José Alburquerque, mais conhecido por Faísca, também ele um homem franzino só não ganha três Voltas porque na última, em 1941, Inácio segue na sua roda na subida para a Guarda não o deixando descolar como havia feito nas vezes anterior. À técnica do corpo junta-se também a táctica da corrida, o posicionamento no pelotão e a marcação às fugas do líder em cada etapa.

O fim da guerra é celebrado pelo Tour com a vitória do francês Robic, em 1947, que restabelece o povo francês das vitória belgas dos anos anteriores à interrupção. São, no entanto, as viórias de Faust Coppi (em 1949 e 1952) que simbolizam a epítome do inicio do período europeu da prova francesa e, logo a seguir, ao vencer três vezes seguidas, Louison Bobet reforça a restituição da confiança francesa dada, essencialmente, pelas narrativas dos media que nestes vencedores enfatizam qualidades passíveis de identificação com a população francesa. 

Sobre a Volta, são também os jornalistas que valorizam a corrida e a promovem à dimensão épica e o mesmo acontece com o Tour quando nele participa, pela primeira vez, Alves Barbosa que anima as notícias com um 10º lugar pela equipa do Luxemburgo e, duas décadas mais tarde, Agostinho vence etapas de montanha como a do Alpe D’Huez.

A singularidade da Volta reside também no domínio da competição por parte dos clubes até ao fim da década de 70 seguida de mais uma década de transição, período durante o qual o clube tem o apoio de um patrocinador. As últimas vitórias de Marco Chagas pelo Sporting em 1986 indicam o abandono dos grandes clubes que empurram as equipas para a existência precária dos projectos empresa.

Durante os primeiros anos da Volta, o drama da corrida é alimentado pela rivalidade entre corredores do Benfica e do Sporting, são estes grandes clubes que contratam os vencedores da Volta de agremiações menores como o são o Rio de Janeiro e o CACO, pelos quais ganharam Trindade e José Albuquerque respectivamente as suas primeiras Voltas. Ambos voltam a ganhar a Volta mas já pelo Sporting e as vitórias dos clubes de Lisboa vão ter um interrégno de mais de uma década com as vitórias dos corredores do Futebol Clube do Porto como Fernando Moreira e Dias dos Santos no fim da década de 40. Nos anos seguintes é a rivalidade entre Alves Barbosa, do Sangalhos, e Ribeiro da Silva, do Académico, que suspende durante quatro edições o protagonismo do clube do Porto.

Alves Barbosa torna-se “O Homem do Dia”, um filme para o qual terá muito que pedalar e pouco que falar. Na imprensa os ciclistas são habitualmente descritos como homens humildes oriundos do mundo rural e, com esta ideia formada, o realizador contrata Alves Barbosa para um dos papeis principais cuja interpretação assenta em aparecer sem ter que falar porque, para o efeito, há o outro protagonista, um actor que faz o papel de seu rival, ao qual cabe a oralidade da acção. Na época Alves Barbosa acha graça ao equívoco porque ninguém espera que ele tenha o 5º ano do liceu e que só não é professor primário porque o pai o colocou perante a opção de ser corredor, e tal como ele, participar também na Volta a Portugal. E é o facto de pai e filho partilharem de experiências idênticas no ciclismo que leva António Barbosa a ficar conhecido com o nome do seu pai, Alves Barbosa.O filme é uma ficção sobre a Volta no qual o protagonista mediático não são os jornais mas a rádio e é em torno do aparelho, colocado na sala de jantar, que toda a família segue as peripécias de cada etapa.

Em 1935 a Volta começa a ser transmitida pela Emissora Nacional e todas as noites Raul Oliveira, director de Os Sports, resume a etapa e leva consigo o vencedor “para dar registo mais impressivo da prova”[20]. A Emissora não se limita a transmitir o relato da corrida e promove espectáculos paralelos ao próprio evento como a Canção da Volta, em 1938.  Sobre a corrida, a narrativa radiofónica pouco acrescenta à notícia do jornal, ou seja, a história que é contada segue os mesmos preceitos da imprensa escrita, com o repórter a transmitir um directo de um posto com telefone enquanto a corrida, longe dele, decorre.

Na corrida propriamente dita a bicicleta é mais leve e os carretos das mudanças aliviam o esforço dos ciclistas nas subidas. Ao nível do treino a inovação acontece com os primeiros ciclistas da Volta a ensaiar nos mais novos novidades que chegam de França em publicações de circulação restrita. É o caso de Alves Barbosa cujo pai torna um dos primeiros profissionais a ser devidamente treinado para ser ciclista. É o seu pai quem orienta toda a sua carreira e concebe um método de treino no interior do paradigma de rendimento, uma novidade para a época, que trata o corpo de forma análoga a um motor e, tal como este, a necessitar de aquecimento prévio antes do trabalho a sério. Mas o jovem não é uma máquina e desfalece perante rigores não complementados com tempo de recuperação e hidratação adequados mas sobre os quais, ainda, pouco ou nada se sabia.

[A 10 de Junho de 1956] fomos convidados para participar no desfile da inauguração do estádio de Alvalade, que culminava com um jogo entre o Sporting e o Vasco da Gama. O meu pai disse: “a gente vai de bicicleta para Lisboa, e depois voltamos para cá.” E e eu pensei, são 200 km ida e outros tantos na volta… Eu já tinha feito vários percursos destes mas ía sózinho. Com o meu pai em cima de mim nunca tinha feito! Com ele já não páro onde quero para beber uma cerveja aqui outra ali e refrescar… Com o meu pai, parei no Bombarral e ele pára a uns 200 metros à frente com a sua motorizada que ele utilizava e com o seu olhar… Um olhar de faquir! Bom, eu ia de tal maneira que dali pra diante comecei a entrar em hipoglicémia: com aquilo tudo, não tinha comido nem bebido aquilo que queria e com ele sempre ao pé de mim… Quando cheguei à Carriche antiga pouco faltou para me pôr a pé… e ele para mim: “então é essa merda que andas a aprender na França?” E eu nem falei, lá fomos para a pensão onde costumávamos ficar, no dia seguinte lá fomos para a festa e essas coisas todas, e no outro dia lá arrancamos a “trezentos à hora” para Montemor. Eu vi-me atrapalhado depois de estar um dia na festa e pedi-lhe para ir por outro sítio: para lá fomos por Torres e para cima por Alenquer. Custou-me tanto aguentar a motorizada naquela recta mas como já tinha passado coisas com ele…. E, se eu largo era uma desgraça! É que eu ía com uma falta de ar de todo o tamanho e, a chegar a Alenquer, a motorizada vai mais devagar e eu comecei a controlar as operações… Fura-lha a motorizada e aquele tempo de arranjo do furo deu-me uma descompressão do caraças que depois fui sempre, fosse ele a que velocidade fosse, até Montemor numa viagem porreira de regresso de Lisboa.

A vida contada de Alves Barbosa é uma teia de enredos de histórias nas quais a Volta a Portugal aparece e desaparece no meio das suas participações em corridas que se realizam em países da Europa, da América e da África. A imprensa escrita segue a sua carreira e a a conquista do 10º lugar no Tour é considerado um marco charneira na internacionalização do ciclismo português que, também, inicia um período de maior contacto e permeabilidade a métodos e técnicas vividos nos estágios que os ciclistas portugueses realizam em França.

É no estágio realizado na Côte Azur que Barbosa descobre a “pastilha” e seus efeitos. No fim dos anos 60 a “pastilha” é classificada de doping pela UCI e, ao nível do Estado, o controlo anti-doping institucionaliza-se. Quando se trata de analisar as práticas de doping, há tendência para uma visão nostálgica da pureza que seria o ciclismo no passado, um tempo não datado, que tem tanto de vago como de idílico.

No Tour, Jacques Anquetil vence por cinco vezes apesar da controvérsia gerada por aquilo que os jornais consideram uma vida boémia. O domínio técnico com que ganha a disputa contra Poulidor, um herói popular apesar de eterno segundo no Tour, representa as tendências opostas da sociedade francesa que, em oposição à ruralidade de que oriundo Pou-Pou (diminutivo de Poulidor), se caracterizam pela modernização, inovação e tecnologia. Mas, a estas caracteristicas, a imprensa associa a previsibilidade do sucesso de Anquetil no Tour que denominam de “frieza da perfeição” (Dauncey, 2003). As últimas vitórias de Anquetil, entre 1961 e 1964, acontecem no período de transição da ilegalização das práticas de doping e, por isso, o facto de assumir publicamente que se droga não faz dele um herói amado o que mostra que não basta ser campeão para suceder no processo de emblematização mediático.

Na obra consagrada a Sports, health and drugs,Waddington (2000) demonstra que o uso de drogas no ciclismo remonta ao século XIX, com os corredores a tomarem uma mistura de heroína e cocaína para aumentarem a endurance na prova dos Seis Dias. Nas primeiras décadas do século XX há até uma certa complacência perante os medicamentos usados para a recuperação dos atletas, considerando-se o seu uso necessário e muitos desses medicamentos aproveitam mesmo os grandes eventos para se promoverem. Quando, em 1924, os irmãos Pélissier desistem do Tour alegando maus tratos e terem de consumir cafeína e cocaína para aguentar as duras condições impostas por Desgrange, não são sequer as drogas o móbil da discussão mediática. O caso Pélissier gerou grande polémica porque, ao desistirem do Tour, os dois irmãos, na época entre os mais dotados e bem sucedidos corredores franceses, são entrevistados por Albert Londres, jornalista do Le Petit Parisien que, no seu artigo, escreve que os ciclistas são os forçats de la route. O caso Pélissier toma proporções inesperadas e, de encontro ao que Londres pretendia, criticam-se os ideais burgueses, em especial os de Henri Desgrange e, mais importante, usa-se a visibilidade mediática dos campeões do ciclismo para levar a público uma discussão mais abrangente sobre a exploração social a que eram sujeitos os operários nas fábricas. Resumindo, o foco da discussão não são as drogas mas questões políticas e sociais às quais não é alheia a concorrência entre os jornais. A ilegalidade das práticas de doping só tem lugar quando o consumo de drogas entre os jovens, na década de sessenta, passou a ser considerado um problema social[21]. Até essa data os ciclistas tomavam, primeiro, cafeína e cocaína e, depois do pós-guerra, anfetaminas. A percepção do doping ocorre também perante casos dramáticos como o de Simpson, no Tour de 1967, que desfalece em cima da bicicleta na subida do Mont Ventoux e acaba por morrer.

É de vida e de morte que tratam as memórias associadas a Joaquim Agostinho. São as suas vitórias súbitas que, nos anos setenta, dão nova vida ao ciclismo. É o drama provocado pela sua morte repentina, numa queda durante a Volta ao Algarve de 1984, que inspira Dick Annegarn a criar o poema C’est toi le plus beau.

Natural de Brejenjas, um lugar do concelho de Torres Vedras, Joaquim parte para cumprir o serviço militar em Abrantes. Após cumprir três anos, prestes a sair, é mobilizado para a guerra em África e vai para Moçambique, onde fica dois anos e meio na tropa e mais seis meses à espera de barco para voltar. Regressa já com 25 anos e a decisão súbita de comprar uma bicicleta em vez de um gira-discos altera a sua vida e a história do ciclismo português. Em 1968, a correr pelo Sporting-Gazcidla, fica em 2º lugar na Volta a Portugal[22], ganha os Campeonatos Nacionais de Estrada, de Contra-Relógio por Equipas e, também, o Individual e a Volta a S. Paulo. É em S. Paulo que Gribaldy, da equipa francesa da Frimatic, o vê correr e convida a ir para França, onde um ano depois, Agostinho fica em 8º lugar no Tour ganhando, inclusive, duas etapas. Regressa a Portugal e fica em primeiro lugar em todos os Campeonatos Nacionais e em vários troféus[23]. No fim desse ano é capa do Século Ilustrado[24] que publica a entrevista “Joaquim Agostinho deixou a enxada para ser campeão de ciclismo”, uma entrevista de cinco páginas na qual confessa que foi o facto de ter um ciclista da sua terra a vencer a Volta que o fez interessar pelo ciclismo porque até aí apenas o futebol e o Benfica lhe despertavam interesse. O ciclista a que se refere é João Roque que ficará mais conhecido por descobrir Agostinho e o levar para o Sporting do que pelo seu curriculo como corredor no qual incluiu a vitória da Volta em 1963, interrompendo o sucesso que o Futebol Clube do Porto nas Voltas antecedentes protagonizadas por Carlos Carvalho, Sousa Cardoso, Mário Silva e José Pacheco.

Na década de 60, é a demografia que dá sinais de mudança ao ambiente fechado do país, com a emigração, a levar os portugueses para os países europeus, nomeadamente França e com o fenómeno do turismo a trazer europeus a Portugal[25]. Um ano depois do Maio de 68, e das preocupações levantadas pelo que se considerava a degeneração juvenil começa o controlo anti-doping. No ano seguinte, Agostinho vence a Volta e é de novo capa do Século Ilustrado[26] cujo título “Acusado de Doping!” exprime admiração e, no interior da revista, a reportagem de cinco páginas deixa sempre a dúvida supondo a possibilidade de troca de análises e, ainda, traduzem uma notícia do jornal francês L’Equipe no qual elogiam o ciclista português pela prestação no último Tour. Agostinho é visto como uma força da natureza e as suas vitórias são o regozijo dos portugueses, nomeadamente dos emigrantes em França, logo só pode estar a ser vítima de um acto de conspiração e, para o efeito, se aponta o facto de ser ilegal estar tanta gente no acto da recolha da urina[27]. Esta reacção ao doping, um misto de dúvida e descrédito por parte da imprensa escrita, irá alterar-se em poucos anos para se tornar assertiva, vigilante e penalizadora.

É durante a Volta de 1970, também ganha por Agostinho, que morre António de Oliveira Salazar[28] que já estava há dois anos afastado da Presidência do Conselho, cargo que ocupou durante trinta e seis anos. Em três anos (70-73) Agostinho vence três Voltas, todos os Campeonatos Nacionais[29], e faz um 5º e um 8º lugar no Tour, entre outras provas e prémios, ora em Portugal ora em França, ora pela equipa do Sporting ora pela equipa do Frimatic. O Sporting acaba com o ciclismo no fim de 1976, para em 1983, com o patrocínio da Raposeira e o regresso de Agostinho de França, voltar a formar nova equipa.

Agostinho não só ganha as corridas como sabe  lidar com a imprensa e adapta-se à imagem de ruralidade e humildade criada sobre si próprio e dela sabe tirar partido. No Tour, o público e a imprensa francesa nem sempre mostram admiração pelos campeões, como é o caso de Eddy Merckx que é apelidado de canibal por conquistar cinco vezes o Tour e ganhar praticamente todas as provas em que participa[30]. Considerado pela imprensa como individualista e ambicioso, o belga é o símbolo da rivalidade entre os dois países e, para parte dos media, representa os valores burgueses da família de que proveniente[31]. Em oposição, a idealização da ruralidade, da simplicidade e camaradagem de Agostinho move a simpatia da imprensa francesa que, ao mesmo tempo, sublinha as capacidades de Hinault, o francês que sucede Merckx nas vitórias sucessivas do Tour.

Não obstante o número de corridas que fazia por ano, Agostinho nunca conseguiu o domínio técnico da bicicleta o que o levava a cair muitas vezes. São as vitórias e as quedas os extremos do epítome de vida de Agostinho, é em torno destes pólos que se organiza o sacrifício do corpo nas histórias de vida dos ciclistas.

Sacríficio muitas vezes ampliado pela natureza singular das estruturas profissionais e das equipas em que inseridos, maior parte delas projectos precários e efémeros. Marco Chagas, vencedor de quatro Voltas a Portugal, é um dos ciclistas que vive a instabilidade gerada pelo fim das equipas sustentadas pelos principais Clubes desportivos. Em 26 anos de carreira, iniciada em 1974 e terminada em 1990, passa por dez equipas diferentes[32]. No inicio da década de 70, a equipa passa a denominar-se projecto que, como o nome indica, é algo temporário e precário. O projecto é empresarial porque para existir passa a depender exclusivamente do interesse financiador de um ou mais patrocinadores. E as equipas tanto podem durar dois ou três anos como apenas os dez meses, que correspondem a uma época e à duração contratual dos ciclistas.

No fim de cada época, em Outubro, começa a circulação dos ciclistas e também dos técnicos de umas equipas para as outras. No que respeita aos técnicos, a polivalência funcional é responsável pela estabilidade de emprego e pela sobrevivência do ciclismo profissional. Marco Chagas é um exemplo dessa polivalência, após vencer quatro Voltas a Portugal, e ter sido desclassificado de uma outra por suspeita de doping,  passa a director desportivo da equipa Sicasal e, depois de abandonar o cargo, fica ligado à RTP e é um dos comentadores da Volta e do Tour nas transmissões televisivas.

A transmissão directa de uma corrida de bicicletas exige meios tecnológicos de tal modo dispendiosos que apenas a Volta a Portugal consegue comportar. Até à década de 80 é o Estado, com a RTP, quem controla a difusão televisiva no contexto de um processo hegemónico comum a toda a Europa e, durante os anos 90, este modelo entra em colapso com o vingar das novas tecnologias, nomeadamente com o aparecimento de canais de televisão privados. Em Portugal, a ruptura acontece com o aparecimento do canal privado SIC que, logo no primeiro ano, vai substituir a RTP na transmissão da Volta. Em 1994, a SIC traz as motos da SFP (Société Française de Production) do Tour bem como o helicóptero devidamente apetrechado com câmara, proporcionando melhor qualidade e estabilidade de imagem. O novo canal não inova apenas no domínio da tecnologia de transmissão da corrida mas também nos conteúdos que selecciona e apresenta ao público. A concepção da SIC mostra a capacidade da produção televisiva em fazer espectáculo a partir de outros focos que não apenas o da corrida. É a SIC que, por um lado, mostra aspectos dos bastidores da corrida revelando ao público o que não lhe é acessível como o espaço privado das equipas e, por outro, cria situações de animação que nada valorizam a corrida em si. Será, no entanto, de novo a SIC que em 2002 concretiza a alteração que faltava para captar imagens do pelotão por inteiro juntando, às motos e aos helicópteros, um avião que faz o relay de todas as câmaras no território da corrida com o veículo da produção que se situa na meta de cada etapa.

Os jornais que inventaram a Volta e o Tour no início do século XX estão agora também eles frente ao ecrã a seguir a corrida. Já não se trata de imaginar a disputa que ninguém seguiu mas criar um título que diferencie aquela notícia de outras notícias sobre uma corrida que é agora visualizada e comentada. A escrita é facilitada pelo computador, as fontes de suporte e ilustração da notícia estão ao dispor na internet, a publicação da notícia pode ser imediata no caso de alimentar um blogue noticioso ou enviada via internet para a sede do jornal. Em qualquer dos casos o tempo de ligação comprimiu-se, tornou-se quase imediato e isso traz uma aceleração a todos os tempos tanto a de concepção como o da produção escrita. Deixou de haver tempos de espera, o jornalista tem de ser ávido na percepção e veloz na criação, o que exige maior planeamento sobre os conteúdos a publicar e o foco em aspectos concretos que têm de ser apresentados de modo inédito. A própria notícia procura visibilidade no espaço de todas as notícias que são publicadas sobre o evento e tem de oferecer uma corrida diferente daquela que o espectador viu na televisão. De novo, a narrativa dos jornais tem de imaginar aspectos relevantes sobre a corrida, sejam eles ligados com a táctica das equipas ou com as questões da ciência e da tecnologia inerentes à bicicleta, ao corpo do atleta e à própria produção do espectáculo.

O papel da imprensa escrita, reforçado pelos sites da internet, continua a ter um papel determinante na fabricação dos heróis desportivos. A internacionalização do Tour, no fim dos anos 80, mostra corredores de países com pouca tradição no ciclismo de estrada a competirem com sucesso como é o caso de Greg LeMond e, depois das vitórias do espanhol Indurain, de Lance Armstrong que tem o recorde de sete vitórias consecutivas.

A produção televisiva oferece um espectáculo autónomo, diferente daquele que é dado a olhar na estrada, o que explica a necessidade das pessoas levarem consigo a televisão ou escolherem os espaços de meta para assistir pelo ecrã gigante à corrida enquanto esperam a sua chegada. Mais, as camaras televisivas interagem com o público criando o fenómeno do “estamos a ver-nos a ver-nos” em que o foco do público é a sua própria acção. A multidão que aguarda a chegada dos ciclistas é também ela espectadora de si própria e actua face às câmaras para si apontadas criando, também, o espectáculo de si própria.

A transformação do espectáculo da Volta deve-se também ao aumento de controlo do espaço e do tempo de momentos chave como a partida e, essencialmente, a chegada da etapa, no qual se incluiu a cerimónia do pódio. Nestes espaços, a estrada é vedada e vigiada e toda a cerimónia de atribuição de prémios obedece a ritmos muito marcados.

No pódio, a orquestração do momento da coroação apesar de ser uma sequência mais pausada, para dar visibilidade mediática aos patrocinadores, não tem quebras de ritmo e o espectáculo oferecido é breve e intenso. A encenação do espaço marca bem a diferença dos campos de possibilidade de afirmação social, quem sobe a palco são as figuras famosas pela participação em reality show  televisivos e as figuras máximas das hierarquias políticas e económicas locais. O aumento do número de prémios – a camisola da Juventude, para o ciclista vencedor mais novo, a camisola da combatividade, para o ciclista que levou o pelotão a reagir e a aumentar o ritmo do andamento, a camisola da montanha, a camisola dos pontos e a camisola amarela – diversifica as fontes de financiamento bem como a possibilidade de fazer subir ao palco um maior número de pessoas e estende, no tempo, a exposição dos principais patrocinadores, que constituem o pano de fundo do palco da encenação.

O ritual do pódio é demarcado por fronteiras físicas que estabelecem também a hierarquia entre os jornalistas da televisão e os outros – dos jornais e das rádios. A televisão tem acesso exclusivo à área restrita dos bastidores do pódio, um pequeno cenário também ele enfeitado com os ícones dos patrocinadores, no qual os vencedores são entrevistados para o directo televisivo, pouco antes de entrarem em palco.

O pódio é a locação do pináculo do poder burocrático quer ao nível da organização do evento, quer do desportivo mas também político e económico. A cerimónia de entronização tornou-se ela própria mais valorizada e orquestrada, um cenário de marcas publicitárias e meninas bonitas no qual se diluem os campeões. O valor reside no momento. É a ordem de entrada em cena que determina o valor dos intervenientes nas trocas económicas. Para o fim fica o ciclista que melhor geriu as trocas de energia no interior da sua equipa e, com isso, lhe possibilitou uma economia de esforço que o levou à vitória e, fica também para último, o maior patrocinador da etapa, o Presidente da edilidade local que, definido por contrato, é quem veste a camisola amarela do vencedor.

Enquanto ao pódio do Tour é frequente subir o mesmo ciclista já no da Volta sucedem-se corredores de várias equipas e várias nacionalidades. Tendência que se verifica desde as vitórias de Orlando Rodrigues em 94 e 95. O recorde de Marco Chagas não é batido e durante a fase de transição, que corresponde à entrada massiva das empresas nas equipas, sucedem-se vitórias de vários corredores portugueses entre os quais só Joaquim Gomes repete, em 1989 e 1993. E Gomes deixa de correr mas não deixa o ciclismo e da Volta é agora o director, máximo responsável pela sua organização.

A humanização da bicicleta, associada à melhoria do piso da estrada, acelera a corrida exigindo um corpo tecnologicamente investido das ciências do treino e da farmacêutica. Esta é a razão que, eventualmente, explica a impossibilidade de aparecerem, de novo, corredores como Joaquim Agostinho ou Eddy Merckx que, por vencer não só o Tour mas todas as outras corridas, é chamado de canibal. O novo canibal, do século XXI, ganha sempre a mesma corrida, a maior de todas e alimenta-se dessa grande energia mediática para, como Lance Armstrong, repetidamente a vencer.  

 Eventos desportivos como o Tour e a Volta são rituais que solidificam as relações sociais, que anualmente reunem as pessoas para juntas celebrarem e, desse modo, preservarem ideias ligadas com a ordem e a hierarquia social. Ambos os rituais mantêm forte tradição territorial e, apesar da fronteira tomar novos sentidos e os itinerários se fragmentarem, o território continua a ser o cenário, o locus de emoções, o refúgio de segurança associado a histórias contadas pelas pessoas sobre si próprias, a estrutura sólida de referência do evento. Por último, o ritual celebra o corpo da modernidade, tecnologicamente investido, e o corpo do sacrifício, do ascetismo e do rigor moral herdado do conformismo provincial. O sucesso ambos os eventos reside na aparente estabilidade e solidez das suas referências, que ciclicamente são lembradas. É a visibilidade mediática que os distingue e que, no quadro competitivo internacional do ciclismo, coloca o Tour no topo da hierarquia mundial e a Volta continua o que sempre foi: o maior evento de ciclismo de Portugal.


[1] Orlando Ribeiro (sd: 134).

Desde que se entenda Olivença como um “parênteses”  nesta pretensa estabilidade.

[2] Ver História do Ciclismo Português de Gil Moreira (1980).

[3] Ver Thomaz (2002) sobre as primeiras grandes Exposições Universais realizadas no fim do séc.XIX.

[4] Brito (1980). O texto que o autor escreve sobre o Concurso é um relato detalhado bastante elucidativo na descrição do contexto da sociedade portuguesa da altura, e do empenho de António Ferro na fixação da tradição portuguesa.

[5] Ramos (1994: 9)

[6]  Ver a propósito Marc Augé (1993)

[7] As fotos de praias aparecem pela primeira vez, no Tour de França nas páginas do L’Auto nos anos 30. Ver a propósito Vigarello (1992: 904).

[8] Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada a 10 de Dezembro de 1948, artigo 24.

[9] A Bola, 20 de Agosto de 1956

[10] Ver Boury (1997: 191)

[11] Marchueta (2002: 18)

[12] Ver Campos (2003: 161)

[13] Segundo o INSEE (Institut National de la Statistique et des Etudes Économiques) sugere-se a seguinte conversão: um FRF em 1930 é equivalente a 0.5 euros em 2004. Site consultado em Junho de 2008: http://www.insee.fr/fr/default.asp

[14] Diário de Lisboa, 7 de Agosto de 1944

[15] Sobre a variação do número de licenças ver Santos (2010)

[16] Diário de Lisboa, 7 de Agosto de 1944

[17] Século Illustrado, recorte encontrado no álbum de recortes de Alfredo Trindade, sem referência a data, apenas com o nome da publicação.

[18] Ver Santos (2010).

[19] Idem

[20] Diário de Notícias, 9 de Agosto de 1935

[21] Ver Thompson (2006 )

[22] Ver Santos (2010).

[23] Idem.

[24] Século Ilustrado, 19 de Outubro de 1968, p. 37

[25] Ver Pina (1988)

[26] Século Ilustrado, 6 de Setembro de 1969

[27] Idem, p. 31

[28] Salazar morre dia 27 e no dia seguinte o jornal publica a sua biografia e informa sobre o seu funeral “O Professor Salazar será sepultado no cemitério de Santa Comba” Jornal de Notícias, 28 de Julho de 1970.

[29] Contra-Relógio Individual e Campeonato Nacional de Estada.

[30]  Marks (2000: 207)

[31]  Idem

[32] Referindo as equipas portuguesas: Águias Clok, Costa do Sol, Futebol Clube do Porto, Lousa, Louletano-Vale do Lobo, Mako Jeans, Orima, Sporting Clube de Portugal e Tensai – Mundial Confiança. Correu também com Agostinho na equipa Frimatic em França.

 

Bibliografia

AUGÉ, Marc. “Heróis”, EINAUDI, Lisboa, IN-CM, Vol. 30, 1990, pp. 128-148

BARROSO, Miguel. História do Ciclismo em Portugal, Lisboa, CTT, 2001.  

BOURY, Paul. La France du Tour. Un espace à géographie variable, Paris, L’Harmattan, 1997.

BRITO, Joaquim Pais. “O Estado Novo e a Aldeia mais Portuguesa de Portugal”, Comunicação apresentada no Actas do Colóquio da Faculdade de Letras, Lisboa, A Regra do Jogo, 1980.

CAMPOS, Christophe (org.). Beating the Bounds: The Tour de France and National Identity (Vol. Vol. 20 Nº 2), Paris, Routledge, part of the Taylor & Francis Group, 2003.

DAUNCEY, Hugh (org.). French cycling heroes of the tour: winners and losers,  (Vol. 20 Nº 2), Paris, Routledge, part of the Taylor & Francis Group, 2003.

GUIMARÃES, Júlio. Recordação da IV volta a portugal em bicicleta: verso e prosa, Lisboa, Livr. Barateira, 1933.

GUIMARÃES, Júlio. Homenagem aos corredores: recordação da 11ª volta a Portugal em bicicleta, Lisboa, Livr. Barateira, 1935.

JÚNIOR, Guita. História da Volta, Lisboa, Talento, 2006.

MARCHUETA, Maria Regina. O Conceito de fronteira ma época da Mundialização, Lisboa, Edições Cosmos, 2002.

MOREIRA, Abílio Gil. A história do ciclismo português: no seu já um século de existência e o que tem sido a sua ligação com a velocipedia internacional, Alcobaça, Ed. do Autor, 1980.

PINA, Paulo. Portugal: o turismo no século XX. Lisboa, Lucidus Publicações, 1988.

RAMOS, Rui. “A Segunda Fundação (1890-1926)”, em José Mattoso (org.), História de Portugal, Vol. vol VI, Lisboa, Círculo dos Leitores, 1994.

REED, Eric (org.). Beating the Bounds: The Tour de France and National Identity (Vol. Vol. 20 Nº 2), Paris, Routledge, part of the Taylor & Francis Group, 2003.

RIBEIRO, Orlando, Geografia e Civilização, Lisboa, Livros Horizonte, sd.

SANTOS, Ana, A Volta a Portugal em bicicleta – narrativas, territórios e identidades Cruz Quebrada, Edições FMH, 2010.

THOMAZ, Omar Ribeiro. Ecos do Atlântico Sul, representações sobre o terceiro império português, Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 2002.

THOMPSON, Christopher. The Tour the France, Los Angeles, University of Califórnia Press, 2006.

VIGARELLO, Georges. “Le Tour de France  “, em P. Nora (org.), Les Lieux de Mémoire, Vol. III, Vol.2, Paris, Gallimard, 1993, pp.887-920.

WADDINGTON, Ivan (2000), Sports, health and drugs: a critical perspective London, Taylor & Francis.

 

Jornais

A Bola, Julho a Setembro de 1947 – 2005

Diário de Lisboa, Julho a Setembro de 1933 a 1934; de 1945 a 1947; 1950

Diário de Notícias, Janeiro a Dezembro de 1925 a 1927

Diário de Notícias, Julho a Setembro de 1931 – 1981

Jornal de Notícias, Julho a Setembro de 1932 – 2000

Mundo Desportivo, Julho a Setembro de 1947 a 1949

O Norte Desportivo, Julho a Setembro de 1948

Os Sports, 1927, 1931-40

 

 

 

Anexo: Relação dos vencedores da Volta – Listagem Cronológica e Alfabética

A – Ordem cronológica

Ano(s)Vencedor Geral Individual
1927António Augusto de Carvalho
1931José Maria Nicolau
1932Alfredo Trindade
1933Alfredo Trindade
1934José Maria Nicolau
1935César Luís
1938José Albuquerque
1939Joaquim Fernandes
1940José Albuquerque
1941Francisco Inácio
1946José Martins
1947José Martins
1948Fernando Moreira
1949Dias dos Santos
1950Dias dos Santos
1951Alves Barbosa
1952,Moreira de Sá
1955Ribeiro da Silva
1956Alves Barbosa
1957Ribeiro da Silva
1958Alves Barbosa
1959Carlos Carvalho
1960Sousa Cardoso
1961Mário Silva
1962José Pacheco
1963João Roque
1964Joaquim Leão
1965Peixoto Alves
1966Francisco Valada
1967Antoine Houbrechts
1968Américo Silva
1969Joaquim Andrade
1970Joaquim Agostinho
1971Joaquim Agostinho
1972Joaquim Agostinho
1973Jesus Manzaneque
1974Fernando Mendes
1976Firmino Bernardino
1977Adelino Teixeira
1978Belmiro Silva
1979Joaquim S. Santos
1980Francisco Miranda
1981Manuel Zeferino
1982Marco Chagas
1983Marco Chagas
1984Venceslau Fernandes
1985Marco Chagas
1986Marco Chagas
1987Manuel Cunha
1988Cayn Theakston
1989Joaquim Gomes
1990Fernando Carvalho
1991Jorge Silva
1992Cássio Freitas
1993Joaquim Gomes
1994Orlando Rodrigues
1995Orlando Rodrigues
1996Massimiliano Lelli
1997Zenon Jaskula
1998Marco Serpellini
1999David Plaza
2000Victor Gamito
2001Fabian Jeker
2002Claus Moller
2003Nuno Ribeiro
2004David Bernabeu
2005Vladimir Efimkin
2006David Blanco
2007Xavier Tondo
2008David Blanco

B – Ordem alfabética

Vencedor Geral IndividualAno(s)
Adelino Teixeira1977
Alfredo Trindade1932, 1933
Alves Barbosa1951, 1956, 1958
Américo Silva1968
Antoine Houbrechts1967
António Augusto de Carvalho1927
Belmiro Silva1978
Carlos Carvalho1959
Cássio Freitas1992
Cayn Theakston1988
César Luis1935
Claus Moller2002
David Bernabeu2004
David Blanco2006, 2008
David Plaza1999
Dias dos Santos1949, 1950
Fabian Jeker2001
Fernando Carvalho1990
Fernando Mendes1974
Fernando Moreira1948
Firmino Bernardino1976
Francisco Inácio1941
Francisco Miranda1980
Francisco Valada1966
Jesus Manzaneque1973
João Roque1963
Joaquim Agostinho1970, 1971, 1972
Joaquim Andrade1969
Joaquim Fernandes1939
Joaquim Gomes1989, 1993
Joaquim Leão1964
Joaquim S. Santos1979
Jorge Silva1991
José Albuquerque1938, 1940
José Maria Nicolau1931, 1934
José Martins1946, 1947
José Pacheco1962
Manuel Cunha1987
Manuel Zeferino1981
Marco Chagas1982, 1983, 1985, 1986
Marco Serpellini1998
Mário Silva1961
Massimiliano Lelli1996
Moreira de Sá1952,
Nuno Ribeiro2003
Orlando Rodrigues1994, 1995
Peixoto Alves1965
Ribeiro da Silva1955, 1957
Sousa Cardoso1960
Venceslau Fernandes1984
Victor Gamito2000
Vladimir Efimkin2005
Xavier Tondo2007
Zenon Jaskula1997