Como citar:
Santos, A. (2013) “Subir à Glória” Revista B, cultura da bicicleta. N 1, pp. 58 – 59.
Subir à Glória
As corridas de bicicleta, as competições desportivas, estruturam a memória colectiva de uma comunidade, de um lugar. Nos primeiros anos do séc. XX o significado da bicicleta circula, desde produto genial da ciência a cavalo dos pobres, altera-se e adapta-se à plasticidade das sugestões de novos usos. Nos hipódromos começa por ser uma inovação ao dispor da distinção de classe para, mais tarde já especializada, no velódromo ser dada a quem tem mais força de modo a alimentar a competitividade, a incerteza do resultado, o espectáculo pago. Ora as corridas de bicicleta não se sujeitam a estes espaços e nas ruas da cidade recriam-se com novidades, como acontece com a corrida na calçada da Glória.
A calçada da Glória é uma ladeira íngreme que liga duas áreas nobres da cidade, os Restauradores ao Bairro Alto. Quando em 1885 nela é colocado o elevador a união entre as duas áreas é facilitada por uma tecnologia que atenua o esforço e diminui o tempo da subida para cerca de 3m. Mas, mal aparecem os velocípedes, são exactamente este tipo de rampas que se tornam um desafio e, ora montados nas máquinas ora ao lado a correr a pé, o que interessa é com o músculo bater o tempo do engenho primeiro movido a água, depois a vapor e agora a electricidade. Um tempo não marcado na lenda de Manuel Ferreira que supostamente com bicicleta de roda alta não só a subiu como, para delírio de todos, também a desceu . Um tempo que em 1910 é cronometrado pelo ciclista Pedro José Moura com 1m e 23s e que ficou registado na História do ciclismo português escrita por Gil Moreira. Um tempo que foi em 1913 superado por Alfredo Piedade ao fazer 1m10s, naquela que se supõe ter sido a primeira corrida.
Como uma vida dedicada ao ciclismo, Gil Moreira fez de tudo, foi jornalista, técnico, empresário e, na obra cita impressa, confessa que se torna ciclista impressionado com as disputas levadas a cabo na calçada da Glória. Em 1926, subir à Glória é uma corrida afamada, divulgada em vários jornais, entre eles o Diário de Notícias, a Revista Stadium e o Eco dos Sports. Os ciclistas, que entre si medem forças, são figuras conhecidas de outras corridas, pertencem a clubes diferentes o que alimenta o drama e a rivalidade vivida pelo público que anima as duas centenas e meia de metros da subida. O vencedor é Alfredo Luís Piedade, um nome que nestes anos reaparece sem cessar e cujos feitos ligam a duração episódica de outras corridas. Ganha a Taça de Lisboa em 1920, a segunda Volta a Lisboa em 1924 e, literalmente, ganha a Glória subindo a calçada num tempo recorde de 55s. A corrida repete-se e nos jornais existem notícias, pelo menos, até 1929, nas quais apenas se mostram fotografias com legendas curtas sobre o entusiasmo que a corrida provoca na multidão.
Nas corridas há uma mise en scéne do esforço, da conquista do território, demonstrando que não há na cidade rampas que resistam à glória da bicicleta. Como epílogo da recriação do evento fica o apelo à Carris para colocar grelhas nos elevadores para levar as bicicletas de gente comum que, sem esse auxilio, jamais conseguirá passar da primeira curva da Glória!