Quando os organizadores da Volta de 1927, inspirados pelo Tour de França, tomam a fronteira continental como referência para o desenho do primeiro percurso nacionalizam a corrida de bicicletas, uma vez que a fronteira simboliza os contornos da pertença nacional.
A competição desportiva passa então a ser ilustrada também pela relação que estabelece com a história e a geografia do território português. Desta relação singular nascem histórias peculiares que a diferenciam do Tour de França que inspirou a sua criação.
Os mapas da Volta, nos primeiros anos e dado o analfabetismo, funcionam como lições elementares de geografia. Os mapas contribuem de modo ilusivo para a vulgarização da cartografia e ajudam a construir o imaginário colectivo dos limites da pertença, a imagem de Portugal.
Desenho realizado a partir das fontes: jornais DN e Os Sports de abril e maio de 1927
Ana Santos
A primeira Volta a Portugal em bicicleta de 1927 é um bom mote para re-pensar o papel da bicicleta no conjunto de opções de mobilidade espacial porque é um percurso moldado por sentimentos de identidade e, por isso mesmo, facilmente reconhecido pelo imaginário social. A Volta é, em 1927, um evento moderno e inovador que rompe com o isolamento a que é remetida a maior parte dos lugares do país. O evento integra esses lugares ao revelar as dificuldades inerentes às suas ligações através das corridas de competição. Nas primeiras décadas do século XX, as corridas de bicicleta muito contribuíram para a divulgação, motivação e popularização do uso da bicicleta.
Em simultâneo, constitui-se num movimento centrípeto e num tempo de reflexão interna mediatizada. Há um legado de textos e fotos publicados nos vários jornais da época que permitem aceder a um retrato do país, i.e., uma referência guia para a comparação que agora, 90 anos depois, se pretende.
Deste modo, entendemos que a mobilidade não tem apenas a ver com mero movimento mas, mais importante, com a superação das distâncias e com o imaginário que essa superação fomenta. Hoje deparamo-nos com um conjunto complexo de movimentos porque a superação da distância entre o aqui e o ali, não reside apenas nos espaços físicos, sociais e psicológicos mas fundamentalmente em espaços eletrónicos virtuais” (cf. Ziegler e Schwanen, 2011: 758). Em 1927 a distância percorrida pela fotografia da etapa de Bragança para ser publicada no DN em Lisboa é idêntica à da pessoa que a transporta; 90 anos depois, os dados circulam em rede própria sem longe nem distância. A mobilidade espacial tem necessariamente de ser analisada por relação a outros tipos de mobilidade: cognitiva, tecnológica, económica e de transferência de dados (cf. Tarrius 2000: 124).
Dar a Volta permite não só entender o percurso em si como, essencialmente, ser capaz de uma abordagem complementar ao campo, baseada na multi-temporalidade em que se justapõem as configurações de Portugal, tratado como um local, com uma identidade que ao longo do tempo se imagina de modos distintos. Para cada um dos lugares por onde a volta passou e agora regressa, interessa analisar como diferem ao longo do tempo e os desafios que agora enfrentam.
Percorrer o território de bicicleta oferece a experiência dos “dois mundos”, de um lado a corporealidade, com a centralidade dada à fisicalidade e à sensibilidade, aquilo que foi retirado do espaço de comunicação das pessoas e, do outro quase paradoxalmente, a tecnologia da comunicação possibilita a partilha imediata das sensações vividas através de vídeos, fotografias, textos colocados nas suas redes sociais virtuais. As pessoas movem-se em várias redes num mesmo tempo tornando o movimento geográfico cada vez mais investido de significado social.
A 1ª VOLTA É O PERCURSO GUIA DA REFLEXÃO SOBRE ESPAÇO – TEMPO – IDENTIDADE
- As narrativas – o espaço mediático – como é as novas tecnologias questionam a soberania nacional e até a democracia?
- A bicicleta – símbolo de pobreza, de distinção social – veículo de transporte marginal mas central nas narrativas do desenvolvimento sustentável e da idealização da cidade.
- como se re-criam ao longo do tempo – fazer de novo a Volta a Portugal é trazer à tona questões de escala e ética, fronteiras geográficas e imaginação social – como se imaginou o país com os primeiros mapas e como se dá a imaginar agora através das fotografias publicadas nas redes sociais – instagram e facebook;
- classe e género – o ciclismo de estrada e a competição desportiva é maioritariamente um mundo de homens que tem vindo a mudar lenta e paulatinamente. Na mobilidade urbana e no lazer, cicloturismo, há que analisar a centralidade das mulheres.
- Território e identidade – as etapas – como alterar o espaço e o lugar para garantir as várias opções de mobilidade? Como se facilita a circulação de todos – ao nível das opções de mobilidade? Como se propicia a ligação entre os lugares e se re-constrói a identidade dos lugares a partir de propostas de turismo ativo?
- Corpo e tecnologia – o valor da fisicalidade pelas sensações vividas
