Em Portugal, tal como em França, são os jornais desportivos que promovem, divulgam e organizam as principais provas desportivas. A Volta a Lisboa, realizada pela primeira vez em 1924, é organizada pelo jornal O Sport de Lisboa. E, em 1927, a dupla Os Sports e o Diário de Notícias anunciam em Janeiro a realização da primeira Volta a Portugal em bicicleta, inspirados no Tour de França que se realizou pela primeira vez em 1903. Seguindo o exemplo francês, aparece o Giro (1909) em Itália e, em 1935, será também o diário Informaciones a organizar a Vuelta de Espanha.
O aparecimento do Tour decorre, ainda que indirectamente, do affaire Dreyfus, considerado por Pierre Nora (1984) como o primeiro evento mediático que dividirá a população francesa e, também, a comunidade ciclista e a imprensa a ela dedicada. O director do jornal Le Vélo, líder de vendas e organizador das corridas Paris-Bordéus e do Paris-Roubaix, assume a defesa do oficial judeu considerando-o inocente da acusação de traição à Pátria. Esta tomada de posição leva a que parte dos industriais das bicicletas deixem de apoiar o jornal, porque se opõem à defesa de Dreyfus, e incentivem a criação de uma outra publicação que de inicio se chamará L’Auto-Vélo.
O novo jornal terá na direcção Henri Desgrange, um antigo ciclista recordista dos cem quilómetros, jornalista e licenciado em direito. Entre o exercício da advocacia e a direcção do jornal, Desgrange dirige o serviço de relações públicas e de publicidade de um fabricante de pneus e será nesta condição que o antigo praticante amador entende a vertente profissional do ciclismo. Para a administração do jornal é chamado Victor Goddet, que havia estado a dirigir o Velódromo do Parque dos Príncipes. No ano de 1902 a disputa entre os dois jornais resulta na duplicação da organização de provas clássicas de ligação entre grandes cidades.
A competição pela liderança nas tiragens, travada entre o L’Vélo e o Auto-Vélo, continua a ser ganha pelo primeiro. Para inverter esta situação Desgrange tem a ideia de realizar o Tour de França e, a 19 de Janeiro de 1903, é anunciado no L’Auto a sua criação e publicado o seu itinerário. O vencedor do Tour teria o prémio de 3000 francos, o equivalente a vinte salários mensais de um operário da época. Perante a resistência dos ciclistas em se inscreverem, dado o grande número de dias da prova, os organizadores tiveram de garantir o salário médio aos primeiros 50 ciclistas que acabassem a prova, que era de cinco francos por dia (Boury, 1997: 54).
Em Portugal, o anúncio da realização da Volta a Portugal provoca nos jornais concorrentes, o Sporting e O Sport de Lisboa, uma reacção de crítica que se estende à UVP por ter dado apoio oficial à realização da prova. Os contornos deste conflito podem ser seguidos nestas publicações, até ao fim da realização da Volta, em artigos que dialogam entre si e são publicados pelos jornais envolvidos na disputa.
Duas Federações? (…) Em Setembro do ano passado, a revista “Sporting” anunciou a I Volta a Portugal em bicicleta, e fez a propaganda que entendeu da sua iniciativa. Mais tarde interessou-se o “Século” na sua corrida, e prepara-se para a levar a efeito.
Em Janeiro deste ano, o “Diário de Notícias”, com a cooperação do “Sports”, anunciou outra I Volta a Portugal em bicicleta, cuja publicidade fez e, como os “Sporting e Século”, vai realizá-la. Perante tais iniciativas, perante reduzido número de corredores, que possuímos, perante a sua nenhuma preparação, e perante a “excelência” das nossas estradas, que competia fazer ao Conselho Director da UVP? (…) Lançou-se de alma e coração, e não sabemos se com alguma coisa mais, nos braços dos “Sports e Diário de Notícias” e atirou com a porta na cara do “Sporting e Século” fazendo-lhes constar à falta de melhor desculpa, que não o interessava a sua prova porque era… comercial. Fizeram mais, e mais grave, os directores da União: armaram-se em organizadores da prova dos “Sports e Diário de Notícias”, esquecendo-se que, fazendo-o, perdiam toda a autoridade, levando os nortenhos a suspeitar dos seus intuitos com o risco de se perder o Norte, para a soberania da UVP
(…) Depois vê-se com espanto, que a grande corrida, tão acarinhada pelo Conselho Director da UVP, nada mais é do que uma grande corrida comercial, feita para servir todos os interesses, menos o do desporto, e na qual os corredores chamados “amadores”, mesmo em treino e sob a vista grossa do mesmo Conselho, que muito propositadamente esquece a alínea B do § 3º do Artigo 19 dos Regulamentos, se tornam admiráveis caixeiros viajantes dos agentes das marcas “Scladis”, “Peugeot”, “Elgin”, “Raleig”, e Olympique”.
(…) Hoje no Norte, trabalha-se activamente pela constituição de uma nova União Federativa Ciclista do Norte de Portugal, que homologará todas as corridas realizadas na região, tomando vulto o boato, que nas mesmas, será negada a inscrição, a todos os corredores licenciados pela UVP (…)
O Sport de Lisboa, 15 de Abril de 1927
Também o jornal O Sport de Lisboa vai ter uma crónica periódica, assinada com o pseudónimo de Pedal X, de análise e crítica aos jornais organizadores e à UVP Na primeira crónica os ciclistas são comparados ao cavalo do Tanganho, o cavaleiro vencedor do Circuito Hípico de Portugal realizado em 1925:
Cavalos do Tanganho?
(…) A bicicleta possui inúmeros adeptos, há verdadeiros apaixonados, qualquer corrida, ainda insignificante, tem numeroso público, os clubs preocupam-se em possuir os melhores “equipeurs” e a provar o que deixamos dito, justificando aquela falta de orientação, surgem organizadores diferentes, uns em Lisboa e outros no Porto que vão realizar este ano, isto é numa época… duas grandes voltas a Portugal.
(…) Em um país sem estradas, que são luxo que dispensamos, e sem corredores, que os não temos preparados nem a preparar para tais empresas, não podemos aplaudir a iniciativa, da qual discordam todos aqueles que, como nós, só fazem desporto pelo desporto. (…) Como se poderá correr em caminhos destes, que nem para passear servem? Um «Az» do ciclismo, responde-nos a sorrir: “Corre-se, sim senhor. Olhe, nenhuma máquina resiste, os pedais partem-se, as câmaras d’ar rebentam, as rodas desaprumam-se, as quedas sucedem-se, os nossos pobres intestinos parecem querer cair-nos nas barrigas das pernas, que mal se sentem e cada um de nós deixará de ser corredor amador para passar à categoria profissionalíssima, aliás ainda não existem nos regulamentos da UVP de… cavalo do Tanganho… Arrebentaremos todos, mal chegaremos ao fim, ainda que bem puxados pelos carros de “apoio” mas fica-nos a suprema consolação de que após a corrida, a benemérita Sociedade Protectora de Animais lavrará o seu altissonante protesto. Não tenha dúvida, vai ser um sucesso!…
(…) O próprio “Diário de Notícias” noticiando os resultados da corrida internacional olímpica de 188 quilómetros promovida pelo comité olímpico em Agosto de 1925 escrevia: “as nossas estradas encontram-se num estado inacreditável» “são caminhos de cabras na frase popular, mas, dolorosamente verdadeira.” “Viajar pelas nossas estradas é uma temeridade, fazer provas desportivas por esses caminhos é expor-se a que os nossos ossos se façam num feixe». «Ninguém decerto negará, que realizar uma prova nas condições em que os nossos estradistas batem os nossos caminhos, não seja um pesadíssimo sacrifício “. «A finalidade desportiva dificilmente é atingida”. “Impunha-se deste modo reparar primeiro as estradas.”
Escrevia isto um dos organizadores de agora e tinha a máxima das razões, mas como o estado dos nossos caminhos não melhorou, antes e bem ao contrário só tem piorado de 1925 para cá, ocorre-nos perguntar como se encontrará finalidade desportiva numa prova de 1900 quilómetros, quando é difícil encontrá-la em 188 quilómetros.
Com que direito vão lançar os nossos corredores sobre 1900 quilómetros de “caminhos de cabras”.
O Sport de Lisboa, 1 de Abril de 1927
Este excerto denota a centralidade do espectáculo das corridas de bicicleta na concorrência entre os jornais. Toda a narrativa assenta em metáforas que tendem a emocionar o leitor, a começar pela comparação dos ciclistas ao cavalo de Tanganho. Um cavalo que ganhou a volta a Portugal contra três outros cavalos utilizados pelo oficial do exército, principal concorrente de Tanganho. A imagem do sacrifício é criada para provocar sentimentos contra o jornal concorrente, contra a realização de uma prova que, de antemão, se adivinha o sucesso a exemplo do que já acontecia com o Tour em França.
As críticas à UVP sobem de tom à medida que a data de realização do evento se aproxima e o jornal faz notar que um dos motivos de realização da Volta será o aumento da venda do número de jornais e, também, o de bicicletas. Motivos que estão também intimamente ligados com a criação do Tour. E esta ligação do espectáculo desportivo a trocas comerciais é alvo de condenação porque o ritual da competição desportiva está imbuído dos ethos amador britânico que Pierre de Coubertin propaga como um dos princípios morais da competição olímpica. As corridas de bicicletas serão apenas dos primeiros espectáculos a mostrar, ainda que veladamente, a potencialidade económica associada à emoção produzida pelo espectáculo desportivo.
E o domínio da produção do espectáculo gera disputa e rivalidade entre os jornais a tal ponto que, em 1927, se assiste não a uma volta a Portugal mas a duas voltas, uma realizada em Abril pelos jornais Os Sports e pelo Diário de Notícias com o apoio da estrutura federativa e outra, logo a seguir, em Maio pelo jornal Sporting do Porto. Na competição entre espectáculos apenas a Volta realizada pelo Os Sports e o Diário de Notícias sucede como ritual que dura há oitenta anos.
Bibliografia
Boury, P. (1997), La France du Tour. Un espace à geographie variable, Paris, L’Harmattan.
Moreira, Gil (1980), A História do Ciclismo Português, Alcobaça, Edição do Autor.
Nora, Pierre (1984), “Entre Mémoire et Histoire. La problématique des lieux”, em Pierre Nora (org.), Les Lieux de Mémoire, II La Nation, Paris, Gallimard.
Texto e imagens retirados da obra:
Santos, Ana (2011) Volta a Portugal em Bicicleta. Territórios, Narrativas e Identidades. Lisboa. Mundos Sociais