Itinerário e viagem de ida
Itinerário: é bom planear para se ficar mais lesto a alterar. Só marquei as dormidas das duas primeiras noites. No fim da primeira etapa percebi que, estando só, o ritmo da pedalada é maior e as etapas passaram a crescer em quilómetros o que levou a alterar os lugares de inicio e fim de cada etapa. O incêndio na área de Bordéus interditou parte da via.
O trajeto escolhido foi Norte – Sul por causa da nortada que é sempre uma possibilidade. Neste caso o tempo encoberto e fresco a Norte foi uma benção porque a sul de Bordéus e junto à costa a floresta estava a ser devastada por um forte incêndio. Fui acedendo a estas notícias através da página oficial da La Vélodyssée e também através da página de facebook da Brompton Group Touring, onde descobri um casal que fazia o mesmo itinerário, mas em sentido contrário ao meu.
Viagem de Ida: acabou o SudExpress, Portugal deixou de ter ligação direta por comboio a França! A ligação direta a Hendaye realizou-se de FlixBus🥲. Foi um desgosto de viagem quando comparada com a viagem realizada numa cabine na carruagem cochette do SudExpress. O inquérito de avaliação da Flixbus não alude ao conforto e possibilidades de propiciar uma melhor noite de viagem. Em suma: um pesadelo de viagem, nomeadamente para quem não vai encostado à janela!
O transporte de bicicletas eléctricas é proibido com a justificação de que as baterias “podem arder”! Enfim! Levei a Brompton eléctrica que tem a bateria na mala que encaixa na frente do quadro da bicicleta (que viaja sempre como sendo a minha bagagem de mão). As baterias podem sempre ser tiradas das bicicletas e serem transportadas nas bagagens de mão. Na Península Ibérica não existe o módulo traseiro de transporte de bicicletas pelo que só se consegue levar uma bicicleta normal se ficar parecida a uma bagagem. A Península continua um “atraso civilizacional” a este nível. Em Hendaye deixei o autocarro e fui apanhar um comboio para Nantes, mais caro que o Flixbus, mas vale bem a diferença pelo conforto propiciado. E, neste caso, há uma carruagem inteira para ciclistas e respectivas bicicletas.
Comboios preparados para a afluência sazonal de ciclistas – uma carruagem preparada para levar bicicletas em cima de bancos que, por isso mesmo, são forradas com grandes oleados com design alusivo.
1ª Etapa: Nantes / Saint-Brevin-les-Pins – 67km
Dormi a primeira noite em Nantes. Depois de um croissant, un pain au raisains et café au lait, com o apoio da aplicação Komoot procurei as setas que assinalam o percurso da Velodyssée. Seguir as setas propicia um ritmo mais fluido e até é divertido descobri-las, por vezes estão escondidas na vegetação. Seguir as setas também nos torna independentes da navegação por satélite que gasta bateria e raramente é síncrono com o movimento que realizamos. Foi fácil chegar ao trilho, um caminho de terra batida serpenteante que percorre um bosque que ladeia a jusante o rio Loire. Depois do bosque, o caminho, já alcatroado, segue a estrutura de canais alimentados pelo próprio rio.
O primeiro dia é, em geral, o mais excitante porque estamos perante novas rotinas, novos rituais, novos percursos e novos encontros com “les uns et les autres”. Sabe bem chegar à via e cruzar com “outros iguais”, ver famílias inteiras, cruzar com mais mulheres que homens que realizam o percurso a sós, mas o número de casais na casa dos 50 anos continua a superar todas as outras categorias nesta contabilidade feita “a olho”. 67km, realizados sem grande dificuldade, ajuda 1 que dá para compensar o peso transportado. Em trajetos como este, plano, nem sempre levo a bateria ligada pelo que no fim dos quase 70 km ainda tinha 1/6 de bateria.
2ª etapa: Saint-Brevin-les-Pins / Bourgneuf-en-Rentz – 80,19 km
O percurso desta segunda etapa segue à beira do atlântico, os portos sucedem-se e, com a maré vazia, os barcos assentam no lodo! Nas vilas atravessadas há feiras simpáticas que vendem um pouco de tudo, desde vegetais a roupa. Não vale a pena andar a carregar viveres porque há muitos lugares onde se podem comprar refeições take way com mesas à beira mar para o seu desfrute.
Aos 40 Km cheguei a Pornic: ora por caminhos de forte odor a maresia ora por veredas floridas com cheiro agrícola 😉. Pornic é uma cidade muito bonita, o trajeto está bem assinalado, mas por vezes não se conseguem ver as setas por causa dos ramos das árvores. Eu levei todo o trajeto da Velodyssee desenhado no Komoot e foi muito útil porque com facilidade nos perdemos, basta não estar com atenção nos cruzamentos e mais vale voltar atrás do que “inventar”. Sempre que inventei fui dar a estradas com muito transito e, contrariamente aos alemães, a paciência para ciclistas é nenhuma. A aplicação komoot é uma salvação porque as suas propostas são sempre por caminhos ou estradas com pouco trânsito.
As casas de pesca são o grande ícone de toda a costa atlântica, são palafitas de madeira com grandes redes suspensas na frente.
3ª etapa (28/7) Bourgneuf-en-Rentz / Saint-Jean-des-Monts – 68 km
Foi nesta etapa que percebi o ritmo e os quilómetros que conseguiria fazer e como vou marcando as dormidas à medida que avanço, passei do “8 ao 80” e passei a planear etapas mais longas… há que ter tino! Deve evitar-se ultrapassar os 90km. A bateria da Brompton num trajeto plano como este aguenta à vontade 70 km no nível 1 de ajuda (tem 3 níveis).
Fui experimentar a água do atlântico e fiquei chocada com a água morna, sem ondas e turva (moro perto do Guincho e nenhum lugar nesta costa superou essa beleza). As zonas de veraneio são um devaneio em animação, passei com rapidez por todos esses lugares. O centro da vila de Saint-Jean-des-Monts é pacato e muito bonito, junto ao atlântico lembra um pouco a “Costa da Caparica + feira popular” (sendo o mar e a areia da Costa soberbos). A areia por aqui é pó de tão fina. Quando vem vento a poeira levanta e fica um nevoeiro estranho e sufocante.
Todo o percurso serpenteia uma região de valados agrícolas, ladeando um dique que contem o oceano e que de tão elevado não nos permite ver o dito. E, passados uns quilómetros desemboca-se num formigueiro de gente que tem pressa em curtir as férias, num “Saint Tropez” anos 2022. Não é fácil atravessar estes centros de recreação veraneante porque as bicicletas de 2 e 4 rodas multiplicam-se em ambos os sentidos. Mas, mal se sai destas cidades, volta a paz campestre.
4ª Etapa: Saint-Jean-des-Monts / La Tranche-sur-Mer – 108.20 km
Os primeiros 60 km, até Les Sables d’Olonne, foram dos mais bonitos da viagem: um percurso variado, depois da urbanidade junto às praias, ora na floresta ora junto a canais de água azul. Pela primeira vez ultrapassei os 100km com uma Brompton. Este planeamento tem a ver com os lugares (leiam dos preços em função do que se pretende) que se encontram para dormir. Marcando com pouca antecedência reduz um pouco a escolha, mas senti que era a melhor opção, não estar condicionada pela marcação de dormidas.
5ª etapa: La Tranche-sur-mer / Saint Laurent-de-la-Prée – 107,32 km
Esta etapa foi a maior “seca” de sempre, com retas de 5 e 10 km, ainda por cima no dia mais quente da viagem e com vento contra. A dada altura doíam-me um bocadinho as pernas! Vá-se lá saber porquê… mas a dor passou rapidamente. A alienação nestas retas instala-se e só queremos chegar ao fim, já nem se olha o milho ou as ervilhas (julgo eu que eram ervilhas) que ordeiramente semeadas em linha acompanham todo o carreiro de terra batida. Passei em Marans sem dar por isso porque foi num cotovelo do trajeto ladeado por arbustos enormes, tive um desgosto quando já em Dom Pierre-sur-Mer dei conta do sucedido. Voltar a fazer a reta de 10 km em sentido contrário não me ocorreu, mais depressa voltarei um dia… quem sabe…
Em Dom Pierre-sur-Merque até uma Coca-Cola eu bebi enquanto esperava uma pizza caseira feita na hora! Um português de perto do Porto animou o meu almoço, um jovem na casa dos trinta, super simpático que se fez à vida saindo de Portugal para melhorar a sua condição de vida. Partiu com muita pena porque ele preferia ter continuado a viver perto da restante família, em Portugal!
Na chegada à cidade de Rochelle, as árvores dão sombra e novo animo. Rochelle é uma cidade muito bonita e tem o que mais adoro: uma estação central de comboio, pena estar em obras, mas foi lá que passei a hora de maior calor e aproveitei para carregar a bateria da bicicleta. A conversa com “les uns et les autres” sucedeu nesta espera / descanso, com um jovem marroquino casado com uma francesa e com uma francesa com cerca de 70 anos de idade, parisiense e moradora no sexiéme, que tinha uma empregada doméstica portuguesa. Os 35 quilómetros restantes foram feitos à beira mar.
6ª etapa: Salles-sur-mer / Gaillan-en-Médoc – 118,62 km
Esta etapa pecou pelo elevado número de quilómetros, muito mal planeada. Devia ter ficado a dormir em Royan, mas como sou anti grandes cidades, escolhi um anexo numa casa de campo, belíssimo, reservando sem fazer as contas ao tamanho do percurso… Quando reparei que seriam perto dos 120 km já era tarde! De qualquer modo, logo de manhã o dia estava ganho com a Pont Transbordeur.
A Pont Transbordeur de Martrou – hoje um monumento do transporte, foi construído no século XIX. A ponte, em Rocheford, estava a 15 km do lugar onde pernoitei, curiosamente este monumento histórico não fica no trajeto da Velodyssée. São as conversas com os meus anfitriões que me levam a desvios à rota estabelecida, são eles que me avisam das partes monótonas e sugerem trajetos mais interessantes. O casal anfitrião, ambos franceses muito queridos e simpáticos – ela enfermeira e ele já reformado a tomar conta do business – têm dois filhos já independentes, um a viver em Paris e outro em Toulouse. Como em todo o lado, as oportunidades de emprego são maiores nas grandes cidades. Queixavam-se da desertificação porque estas áreas de veraneio são marcadas pela sazonalidade, pelo bom tempo dos meses de verão.
Este foi, até agora, o percurso mais longo, mas também um dos mais variados e com três boas quebras: a Pont Transbordeur, a Ponte Marennes-Hiers-Brouage e, por último, a travessia de barco em Royan. O percurso até Royan atravessa, de novo, as áreas de veraneio e devaneio, com parques temáticos de um lado, um misto entre feiras populares e parques Disney e, do outro lado, escondidas pela vegetação, as praias que só consigo ver quando chego aos promontórios. A parte do percurso entre as veredas verdejantes é um sobe e desce porreiro para gastar a bateria, a outra parte que circunda as vilas veraneantes é um desespero para ultrapassar longas filas de ciclistas que se movem em ambos os sentidos, com gente que passeia de modo errante saltando de um lado para o outro como pipocas a escapar do quente da panela. “Deus nos guarde e afaste destes lugares”.
A viagem de barco foi literalmente refrescante. As salas de espera sem tomadas é algo que não se entende e, por isso, reclamei. Em 50 minutos de espera eu teria oportunidade de carregar 1/6 da bateria que me dariam muito jeito para os 40 km que me faltavam fazer. Em Solac decidi então parar para tomar uma imperial enquanto a bateria carregava na loja de bicicletas que ficava em frente.
7ª Etapa: Gaillan-en-Médoc / Sainte-Hélène – 74,2 km
Fora do percurso da Velodyssee (evitando uma área que teve um incêndio na semana passada) fiz a Rota dos Château (vinhos): “Data de 1865 a proposta de explicação da origem da escolha do termo “château” para designar uma quinta vitícola – trata-se de uma hierarquia, em qualidade, dos vinhos que no antigo regime provinham de parcelas pertencentes ao Senhor, os “vinhos do castelo” e os das parcelas menos nobres.” Fonte: Wikipédia. A denominação, antes estrita, aplica-se agora a cerca 12 000 produtores.
A parte da manhã, em geral, tem sido muito fresca, desta feita com um nevoeiro excelente, depois das 11:00 é um Deus nos acuda com o calor a aumentar! Sabia que me esperava uma piscina pelo que acelerei para poder descansar um pouco mais, leiam dormir uma bela sesta! O desvio da costa não compensa porque as alternativas por estradas secundárias é fraca e acaba-se numa estrada com trânsito sem bermas. Neste caso com via interdita devido ao incêndio segui o conselho dos anfitriões, fazer a rota dos vinhos, mas esta rota é para fazer de automóvel e não de bicicleta.
8ª Etapa: Sainte-Hélène / Gujan-Mestras (87,17 km)
Nas ciclovias perpendiculares ao mar, a monotonia instala-se porque são retas de 20, 30 km, não sei como as conseguiram arranjar assim tão direitinhas! Passei por algumas vias que estavam interditas a partir das 13h, porque a área atravessada é de floresta e o perigo de incêndio é real.
Numa destas grandes retas tentei ir na roda de um um ciclista (que devia ter a minha idade) que ía numa bicicleta de corridas em lazer, sem cargas, logo a andar mais que eu. Eu com roda mais pequena e só na ajuda 1 (em 3, que apenas compensa o peso que levo) sou mais lenta. O cretino olhou para trás, percebeu o meu oportunismo, levantou o rabo do selim e acelerou… que deselegante, pensei eu, recusar ser domestique de uma dama! Uns 3km à frente estava ele parado. Passei e continuei… uns dois km à frente ultrapassa-me de novo dizendo algo que não entendi com ar jocoso! Uma portuga como eu não vai levar desaforos para Portugal e, puxando do nível 3, acelerei e passei por ele, tipo TGV a passar pelo regional, batendo com a mão nos calções a dizer “anda, anda”! A cara do tipo valia um filme! Adieu!
9ª Etapa: Gujan-Mestras / Duna Pilat / Arcachon (38,7 km); Hendaye / Irun (17,85 km)
Insisti em ir à Dune du Pilat apesar de estarem interditas todas as ligações. Como o incêndio na área já tinha sido dominado a interdição era só à tarde. Cerca de 250 metros de altura e com “2,7 km de costa linear e até 500 m de bosque do Parque Natural das Landas de Gasconha, para cujo interior penetra inexoravelmente à razão de 3 a 4 metros anuais, segundo as medições realizadas desde a década de 1960.” (Fonte: Wikipédia). Este bosque foi uma das áreas atingidas pelo incêndio do fim de julho.
Arcachon é uma vila de veraneio em que vale a pena pernoitar. Tem mercadinhos ao longo da costa onde se pode comprar comida feita óptima para fazer um pic-nic na praia. Os acessos às praias são fáceis e não faltam zonas para amarrar as bicicletas em segurança (visíveis do lugar onde ficamos).
O regresso de Flixbus, mais um pesadelo de viagem! O inquérito de satisfação foi feito por quem nunca fez a viagem, com questões sobre a marca e nenhuma sobre o que realmente interessa, o conforto da viagem. Estamos no século XXI e não se entende porque não tratam a ergonomia dos bancos de modo a propiciarem um bom encosto para a cabeça e uma inclinação que propicie o mínimo de conforto a quem passa uma noite inteira no autocarro. TRISTE! Triste é também deixar a capital de Portugal sem ligação ferroviária direta a Madrid e a Hendaye – a falta de ligação internacional dita o atraso civilizacional a que chegou a ferrovia de Portugal!