Esta quarta-feira é o Dia Europeu Sem Carros, uma iniciativa que assinala este ano o 22.º aniversário. Ao Expresso, a antropóloga Ana Santos fala sobre os desafios de mobilidade que as nossas cidades enfrentam e explica como o segredo para uma vida mais saudável pode estar no caminho de casa para o trabalho – adotou a bicicleta há dez anos, após uma experiência em Paris, mas sublinha que está longe de se ver como um exemplo

22 SETEMBRO 2021 7:58

Cláudia Monarca Almeida

Jornalista

Como são as suas deslocações diárias? Longas? De carro? E podiam ser feitas de outras formas? Estatisticamente, o mais provável é que seja um utilizador assíduo do carro, mas será essa a forma mais racional de nos mexermos na nossa cidade?

Segundo dados da EurostatPortugal é o segundo país europeu onde mais se anda de carro (88,4% das viagens), ficando apenas atrás da Lituânia (90,4%). Estamos acima da média da União Europeia (82,9%), onde esta é forma de transporte dominante em todos os países. Em contrapartida, em 2019, apenas 4,6% das viagens eram feitas de comboio e 7,2% de autocarro (números que, alerta o Gabinete de Estatística da UE, podem ter sofrido alterações com a pandemia).

Ana Santos antropóloga e professora na Universidade de Lisboa, há muito que começou a “questionar os modos como as pessoas se movem”: “É racional cada um ter o seu automóvel? Não é mais racional haver transportes públicos eficientes? Não é mais racional facilitar as pessoas andarem a pé?”.

Este uso massivo do automóvel tem um forte impacto ambiental e na qualidade do ar que respiramos. Atualmente, os transportes representam cerca de 25% das emissões de gases com efeitos de estufa na UE. Em julho, a Comissão Europeia assumiu o objetivo de cortar em 90% as emissões desses gases até 2050, reduzindo 55% das emissões associadas aos carros já em 2030.

Foi do reconhecimento desta realidade que foi criado há 22 anos o Dia Europeu Sem Carros.

Integrado na Semana Europeia da Mobilidade (16 a 22 de setembro) – que é “uma ótima oportunidade para propor alternativas sustentáveis aos europeus”, como explica a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) -, o dia simbólico propõe o encerramento ao trânsito automóvel de uma parte dos centros da cidades e vilas, “por um período de tempo significativo (isto é, pelo menos desde uma hora antes até uma hora depois do normal período de trabalho)”. Em alternativa, os cidadãos são incentivados a andar a pé ou a usar transportes públicos.

Este ano, a iniciativa conta com 3036 participantes em 50 países. Em Portugal, vão participar 85 municípios de norte a sul do país, como Porto e Lisboa, mas também capitais de distrito, como Coimbra, Setúbal e Faro, e cidades e vilas mais pequenas de que são exemplo Barcelos e Mértola.

Durante esta semana, os municípios são também incentivados a adotar medidas mais permanentes que incentivem e facilitem a adoção de comportamentos mais sustentáveis, desde a melhoria de infraestruturas (construir estacionamentos para bicicletas e passadeiras ou mudar pavimentos) ao reforço da oferta de transportes públicos e partilhados.

“[A questão que se] coloca no aumento das cidades é racionalidade do ponto de vista do usufruto do próprio espaço”, afirma Ana Santos, investigadora no CRIA (Centro em Rede de Investigação em Antropologia). “Se cada um se deslocar para Lisboa no seu automóvel, naturalmente que todo o espaço livre que existir entre os prédios tem de ser para estacionamento. Portanto perde-se o espaço, nomeadamente para os miúdos brincarem, para parques, etc.”

A esta questão (e ao problema ambiental) junta-se o congestionamento das vias de acesso à cidade. Em média, cada português demora 21 minutos no percurso entre casa e o trabalho. A maioria despende entre 1 e 29 minutos neste trajeto, mas há quem demore entre 30 a 59 minutos (15%) ou mesmo mais de uma hora (10%).

“O problema [da mobilidade urbana] está a montante”, defende. Para a professora da Faculdade de Motricidade Humana, esta questão coloca-se cada vez mais porque as pessoas estão a perder progressivamente a capacidade de morar nas cidades, aumentando a distância casa-trabalho

NO CAMINHO PARA UM NOVO PARADIGMA DA MOBILIDADE

A questão da mobilidade sempre foi uma temática de interesse para Ana Santos, mas a mudança chegou há dez anos, quando tinha 47. “Fui a um congresso sobre a história da bicicleta em Paris e lá conheci colegas que tinham essas bicicletas dobráveis que vinham de sítios incríveis de fora de Paris e tinham feito a viagem de bicicleta e comboio.”

Na altura, a capital francesa tinha acabado de lançar as bicicletas partilhadas e a antropóloga decidiu experimentá-las. “[Quando voltei] decidi estudar o fenómeno em Portugal de forma etnográfica, ou seja, eu própria a viver o assunto.”

Comprou a primeira bicicleta em 2011 e atualmente tem uma desdobrável elétrica, que lhe permitiu ganhar ainda mais autonomia face ao carro, pois consegue fazer as subidas do regresso a casa sem grande esforço.

“A maior parte das pessoas, quando pensa em mobilidade pessoal, só pensa no carro, porque não está habituada a pensar em mais nada. A maior parte das pessoas da idade da minha filha [25 anos] cresceram no banco de trás, com a mãe e o pai que os leva de um lado para o outro. As cidades cresceram assim também”, constata.

Por isso, acredita que a solução do futuro passa por um lado por fomentar uma nova cultura em torno dos meios de transporte. “Tanto França como Alemanha têm redes de ciclovias internacionais, regionais e locais. Partem do pressuposto, do ponto de vista do valor e significado [atribuído a este meio de transporte], que se uma criança cresce a passear com os pais de bicicleta, o lazer vai ajudar a criar valor para uma utilidade no futuro.”

No entanto, para Ana, a bicicleta é apenas “mais um dos meios possíveis de mobilidade”. “A utopia de pôr andar toda a gente de bicicleta é complexa, porque há uma parte da população que não sabe andar.”

Em alternativa, a investigadora defende que criar condições para andar a pé em segurança e investir em transportes públicos devem ser prioridades, porque são as soluções “verdadeiramente universais”. “Não sou anticarros, nem antibicicletas, nem anti-andar a pé. Também não sou pró qualquer coisa destas. Do ponto de vista pessoal, sou motorista, ciclista e peão”, explica.

É nesta intermodalidade que vê o futuro. “Cada um destes meios de transporte tem as suas vantagens e desvantagens. Eu não vejo só o uso de uma coisa ou da outra. Vou usando tudo o que posso e planeio isso para o dia a dia.”

Esta questão torna-se particularmente relevante para quem não vive perto do trabalho. “Não vamos pensar que as pessoas que moram no Cacém ou na aldeia dos arredores de Cascais ou na Malveira da Serra vão pegar na bicicleta para ir para o local de trabalho. Não, porque nada está organizado para que isso aconteça”, acrescenta.

No entanto, a investigadora acredita que, se forem criadas as condições para isso – como por exemplo, a construção de ciclovias que unam municípios, parques de estacionamento para largar carros junto aos transportes, uma oferta ao nível da procura nos comboios -, a população tenderá a mudar para meios mais sustentáveis nas deslocações.

“Falo mais da urbanidade e da cidade sem carros, porque a aldeia sem carros é uma perdição”, ressalva a professora, que durante o confinamento esteve a viver na casa de família numa aldeia perto de Oliveira do Hospital. “Não há transportes públicos, só uma camioneta de manhã e à noite quando há escola para os miúdos. Os velhinhos passam a vida a boleias. É uma outra realidade que não tem nada a ver com as grandes cidades. Aí este discurso de misturar automóvel com bicicleta não faz sentido nenhum. Não vou meter o meu pai com 80 anos numa bicicleta, porque se cai e parte um osso é uma desgraça.”

“MOVA-SE DE FORMA SUSTENTÁVEL. SEJA SAUDÁVEL”

A saúde é a tónica do ano na Semana Europeia da Mobilidade, que tem como tema “Mobilidade Sustentável: em Segurança e com Saúde”. Sob o slogan “Mova-se de forma sustentável. Seja saudável”, a campanha quer – segundo a APA – encorajar-nos a “manter a forma física e mental, enquanto exploramos a beleza da nossa cidade, região ou país, respeitando o ambiente, a nossa saúde e a dos outros, ao cuidarmos da escolha do nosso meio de transporte”.

“Um dos problemas que temos [atualmente] é que o corpo deixou de ser usado para trabalhar. Estou todo o dia sentada. A única parte do corpo que uso muito é as mãos no teclado e os olhos a ler. De resto, o movimento é restrito”, afirma Ana Santos. “Ora para compensar essa falta de movimento tenho de arranjar formas de gastar a energia. Uma das formas é através do exercício físico.”

Em 2019, a Avenida Marginal - que liga Lisboa a Cascais - esteve encerrada para assinalar o Dia Europeu Sem Carros (22 de setembro)
Em 2019, a Avenida Marginal – que liga Lisboa a Cascais – esteve encerrada para assinalar o Dia Europeu Sem Carros (22 de setembro) Nurphoto

“Se virmos no nosso movimento diário como uma possibilidade de exercício, se enquanto vou para o trabalho e venho puder incluir andar a pé ou de bicicleta, obviamente que ganho ao fim do dia um gasto calórico que me permite equilibrar a quantidade de alimentos que ingiro”, exemplifica. “Este equilíbrio é essencial para que o aumento da esperança de vida também aumente em qualidade, para não chegar aos 60 ou 70 anos com um nível de obesidade muito grande ou com doenças incapacitantes.”

No caso da investigadora, da aldeia onde mora até à estação de comboio de Cascais demora 14 minutos e depois tem de pedalar apenas mais um quilómetro entre a estação da Cruz Quebrada e a universidade onde trabalha. Quando está bom tempo, opta muitas vezes pela rota mais cénica da ciclovia do Guincho.

No final do dia, Ana consegue cerca de 60 dos 90 minutos que estabeleceu como objetivo diário de exercício físico só nas deslocações, mas “tudo o que seja mais de 30 minutos por dia está ótimo (valor indicado pela OMS)”.

DA MODA “CONTRAPRODUCENTE” AOS CAMINHOS PARA O FUTURO

Do interesse académico, a antropóloga criou em 2017 o projeto “Dar a Volta”. A ideia era provar que o cicloturismo é viável no nosso país, atravessando Portugal pela rota usada na primeira Volta a Portugal em bicicleta, em 1927.

“Comecei a viajar pelo país inteiro. Descobri as ecopistas e depois a ver como era andar nas estradas municipais. [Mais tarde] comecei a misturar comboio com bicicleta e tornaram-se viagens espantosas, de conhecimento do país”, conta a investigadora

Estas viagens intermodais passam, por exemplo, por ir de comboio até Setúbal, de barco até Tróia, de bicicleta até ao Algarve e retornar de comboio para Lisboa ou até Viana do Castelo, de regional para Caminha, na ecopista até Monção, por estrada até Braga e voltar de comboio.

Destas experiências, a investigadora, que nos últimos anos tem viajado para França, Alemanha, Reino Unido e Estados Unidos para conhecer também a realidade destes locais no que toda a bicicletas, concluiu que Portugal ainda tem um caminho a fazer.

“Portugal tem uma coisa engraçadíssima: temos uma temperatura espetacular na maior parte do ano, temos uma rede de estradas municipais com possibilidade de ter lazer ciclável (porque a maior parte do trânsito foi retirada para os IP e IC). Mas depois não há nem sinalização, nem congruência entre o que já existe – que já é alguma coisa -, nem disponibilização de informação dos locais sobre percursos, como placas a dizer quantos quilómetros tem”, lamenta.

“Dá ideia que é moda cada local fazer uma ciclovia e depois é contraproducente, como em Lisboa, [onde] neste momento ser peão é perigoso [por causa das ciclovias construídas nos passeios]”, critica.

Por um lado argumenta que é inútil “construir ciclovias à moda que não tenham ou uma ligação dos bairros às escolas ou aos nós de transportes públicos”: “Se não elas não servem para rigorosamente nada, sem ser ao fim de semana para andar a pé.”

Por outro, refere a necessidade de olhar para as ciclovias de uma perspetiva mais utilitária, como vias de mobilidade para serem usadas nas deslocações quotidianas e entre municípios. “[Atualmente] estas coisas só são vistas do ponto de vista do lazer.”