A viagem de Coimbra a Meruge (Oliveira do Hospital) cobre cerca de 90 km, atravessando o planalto do rio Mondego, uma paisagem marcada por vales abertos, zonas florestais e pequenas aldeias rurais. A partida de Lisboa faz-se confortavelmente no Intercidades até Coimbra, ponto de início da travessia em bicicleta rumo ao interior.

Na volta, há opções ferroviárias em Carregal do Sal ou Nelas, permitindo um regresso mais rápido a Coimbra ou Lisboa. No entanto, para quem dispõe de mais tempo, vale a pena prolongar a aventura e seguir pelo rio Alva até Coimbra, um percurso de cerca de 90 km que passa por locais emblemáticos como Penacova, com as suas encostas verdejantes e o serpenteado do rio a acompanhar grande parte do trajeto. Uma alternativa que combina desafio físico e paisagens deslumbrantes, num trajeto feito por estrada, só para quem está habituado a pedalar com trânsito.
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Penacova

A subida a Penacova é um dos desafios marcantes do percurso, com curvas que se desenrolam encosta acima, recompensando o esforço com uma vista panorâmica sobre o rio Mondego e os vales verdejantes da região. O ritmo lento da subida permite apreciar a mata, onde o silêncio só é interrompido pelo som do vento entre os pinheiros e eucaliptos, até ao Penedo do Castro.

A descida para o Mondego é um verdadeiro deleite, com a estrada a serpentear suavemente até à Biblioteca do Mondego, um conjunto curioso de formações rochosas junto ao rio, que evocam estantes de livros empilhados. Este geossítio, resultado da erosão ao longo de milhares de anos, é um dos segredos naturais da região, tornando-se um local perfeito para uma pausa antes de continuar rio Mondego acima.

Travanca do Mondego

Atravessar Travanca do Mondego por uma estrada paralela ao Itinerário Complementar (IC6) revela-se uma experiência inesperadamente divertida. O percurso, longe do tráfego intenso da via rápida, oferece um sobe e desce constante, ritmado e fluido, que proporciona a euforia de uma pequena montanha-russa natural.

O traçado alterna entre pequenas subidas que exigem alguma cadência e descidas suaves que permitem ganhar balanço, num equilíbrio perfeito entre esforço e prazer. A paisagem rural acompanha o trajeto, com campos cultivados e encostas arborizadas a emoldurar a estrada. Sem pressa e sem grande dificuldade, este trajeto transforma-se num dos momentos mais leves e dinâmicos da viagem, lembrando que, por vezes, são os detalhes inesperados que tornam um percurso memorável.

Ázere

Ao deixar Ázere, ficam gravadas na memória as flores dispersas pelos caminhos, salpicando de cor amarela as margens da estrada, e o som dolente do sino, marcando o tempo com a serenidade própria das aldeias do interior. O toque pausado ecoa pelo vale, misturando-se com a brisa e o murmúrio das folhas, como se cada badalada contasse a história silenciosa do lugar.

Tábua

A chegada a Tábua traz consigo a imponência da Serra da Estrela, que se recorta ao fundo, dominando o horizonte com a sua presença majestosa. O percurso, no entanto, faz-se por uma estrada mais movimentada, onde o trânsito exige atenção redobrada, quebrando momentaneamente a serenidade da viagem.

A experiência fica marcada por um jovem motorista impaciente, cujo desrespeito na ultrapassagem deixa um gosto amargo, lembrando os desafios de partilhar a estrada com quem não valoriza a segurança dos ciclistas. Após o contratempo com o patético motorista, a passagem por Travanca e Lagares da Beira devolve a tranquilidade e o prazer da viagem. Nestas estradas, a maioria dos motoristas até respeitam quem viaja de bicicleta.

O percurso serpenteia suavemente, permitindo recuperar a sintonia com a paisagem e afastar qualquer resquício de irritação. Entre aldeias de pedra, oliveiras e socalcos agrícolas, a viagem prossegue reencontrando o equilíbrio, lembrando que a estrada, apesar dos seus desafios, é sobretudo um espaço de descoberta e reencontro com a beleza do caminho.

Planalto do Mondego

Não reconheci o cruzamento para a minha terra porque o incêndio de 2017 retirou as árvores da paisagem. No livro “Le Paysage et la Mémoire”, o historiador Simon Schama explora como as paisagens naturais, incluindo as árvores, estão profundamente entrelaçadas com a memória coletiva e a identidade cultural das comunidades.

Schama argumenta que as paisagens não são apenas cenários naturais, mas também construções culturais carregadas de significados históricos e simbólicos. As árvores, em particular, desempenham um papel central em muitos mitos, tradições e rituais, servindo como marcos de identidade e memória para diversas culturas. Quando elementos-chave de uma paisagem, como árvores familiares, são removidos ou alterados, isso pode desestabilizar a nossa conexão emocional e cognitiva com o lugar, levando a sentimentos de desorientação e perda.

Além disso, Schama destaca que a nossa percepção do ambiente é marcada por narrativas culturais e pessoais. As árvores e outros elementos naturais atuam como âncoras nas nossas lembranças e experiências. A ausência desses marcos pode criar uma sensação de desorientação, uma vez alterado o cenário de suporte às nossas memórias.

A ideia central de Schama é que a paisagem e a memória estão intrinsecamente ligadas. A modificação ou perda de elementos naturais significativos pode alterar a minha orientação espacial e conexão emocional com a minha terra. Só a seta com o nome Meruge me devolveu a memória do lugar.