Corridas de bicicleta de Lisboa
As corridas de bicicleta são intrínsecas à cultura urbana, refletindo a história e a evolução da cidade. Elas demonstram como as atividades se podem adaptar às mudanças sociais e tecnológicas. Além disso, as corridas proporcionam uma conexão íntima com o ambiente urbano e natural de Lisboa.
A bicicleta e o ciclismo em Portugal constituem, via competição desportiva, um raro potencial de memória, um manancial patrimonial a partir do qual se configuram identidades locais e identificações por parte das suas comunidades. A Volta a Portugal em bicicleta ilustra uma história de Portugal do último século. E, de igual modo, as corridas na cidade de Lisboa propiciam nas primeiras décadas do século XX um raro momento de descoberta da própria cidade – dos seus limites com a Volta a Lisboa, criada em 1925, das suas rampas íngremes, como a corrida da Subida da Glória, que data de 1913 e cuja recriação teve sucesso em 2013, das suas possibilidades de ligação entre cidades, como a clássica Porto-Lisboa, criada em 1911.
SUBIDA DA GLÓRIA
SUBIDA DA GLÓRIA 1926
Data de 1910 o primeiro registo cronometrado, mas é em 1913 que a disputa se avoluma e depressa se torna numa das mais célebres corridas de Lisboa, na qual em 1926 Alfredo Luís Piedade ganha a Glória de um recorde de 55 segundos.
SUBIDA DA GLÓRIA 2013
Mas não há corrida sem festa nem euforia e eis que tamanha alegria também aconteceu na Subida à Glória de dia 17 de maio de 2013 e anos seguintes em que se repetiu a contenda. Envolvida em grande frenesim, à corrida não faltou o som dos Rádio Macau que também dedicaram uma canção ao elevador que liga a Baixa ao Bairro Alto: uma alegoria às ilusões da vida motivadas por subidas rápidas sem canseiras nem fadigas.
A prova da SUBIDA À GLÓRIA, consiste em realizar a escalada da rampa da Calçada da Glória de bicicleta no menor tempo possível. Há notícias das subidas nas primeiras décadas do Séc. XX e delas Gil Moreira na sua obra sobre a História do Ciclismo Português. Há, então, notícia de Manuel Ferreira (1870-1954) que não só subia como também, para ggáudio de todos os que assistiam, descia a rampa com a sua bicicleta de roda alta. Gil Moreira refere que, em 1910, José Moura subiu a calçada em bicicleta com o tempo de 1 min 23 s. Segundo o autor, ainda nesta década Alfredo Piedade muito jovem terá feito 1 min e 10 s. Em 1926 a corrida é noticiada por vários jornais e ilustrada com fotografias que mostram a multidão a assistir ao espectáculo da subida. Os jornais noticiam o feito que representa o tempo conseguido por Alfredo Piedade: 55 segundos. A calçada da Glória é uma subida que Tristão da Silva tornou fado cantado, no qual não há glória merecida sem sacrifício suado e, perante esta sina acrescentamos, cabe ao ciclista enfrentar e vencer a rampa na corrida.
VOLTA A LISBOA
Desde que inventada a bicicleta, em meados do séc. XIX, o espaço da cidade foi dos primeiros a ser investido, explorado e até alterado por esta nova tecnologia, primeiro associada ao lazer e, logo depois, à competição desportiva e ao transporte pessoal. A primeira Volta a Lisboa realizou-se no dia 13 de outubro de 1924 e foi organizada pelo O Sport de Lisboa.
As meninas Bermudes são filhas do Director do jornal O Sport de Lisboa, organizador da prova. São das poucas meninas a participar na 1a edição de 1924.
Oceana Zarco participa na Volta a Lisboa e também vence a Volta ao Porto e a Volta a Setúbal. Na década de vinte há vários registos de mulheres no cicloturismo bem como nas corridas de ciclismo mas Oceana é a única que corre com equipamento parecido ao dos homens, algo que a distingue das poucas mulheres contra quem disputa estas competições.
Desde o inicio do século que nos jornais se discute qual a relação que a mulher deve ter com a bicicleta, nomeadamente sobre o tipo de vestuário, em que a ciclista começa por ser comparada com a amazonas. O jornal o campeão, em 1900, tem inclusive duas rubricas regulares, uma sobre a “bicycleta e a saúde” e outra sobre a “bicycleta e a mulher”. Nos aspectos ligados com a saúde recomenda-se exercício moderado para crianças e jovens que também é receitado a meninas nervosas como meio de combater o sedentarismo e cultivar em simultâneo o vigos, a graça e a beleza e, para além disso, considera-se imperioso proibir a bicicleta a menores de 12 anos.
A história do desporto, género e nacionalismo em Portugal ainda está por contar, mas no ciclismo são os homens os protagonistas e na Volta a Portugal os únicos. Nicolau e Trindade (anos 30) vincam o modelo heróico associado em exclusivo ao sexo masculino, já antes iniciado pelo ciclista José Bento Pessoa. O orgulho local será construído em torno destes modelos de heroicidade, naturalizando cada vez mais a ideia de que as provas de ciclismo por etapas são domínio dos homens, dada a dureza e sacrifício exigido pelas provas.
Atualmente a participação das mulheres nas corridas de bicicleta cresce, nomeadamente no BTT. O domínio dos homens no ciclismo de estrada prende-se com a tradição e não com a falência do corpo das mulheres. As vitórias alcançadas nas maratonas de atletismo pelas mulheres, não permitidas até aos anos 80 com base no argumento de falência física, provam isso mesmo.
VOLTA A PORTUGAL
A Volta a Portugal foi criada em 1927 pelos jornais desportivos Os Sports e o Diário de Notícias. É a imprensa escrita que, no início do século XX promove, divulga e organiza as principais competições desportivas. A primeira Volta a Portugal em bicicleta é inspirada pelo Tour de França que se realizou pela primeira vez em 1903. O Giro de Itália é criado em 1909 e, por último, a Vuelta de Espanha em 1935.
O primeiro percurso segue paralelo à linha da fronteira do continente português que, por sua vez, simboliza os contornos da pertença nacional. Quando os organizadores da Volta fazem da fronteira um recurso simbólico da corrida nacionalizam uma corrida de bicicletas, inventam o Tour dos portugueses.
Dar a volta a um país, seguindo um percurso junto à fronteira continental de Portugal, tem um significado político e social para qualquer competição desportiva, seja ela realizada a cavalo ou de bicicleta. É o percurso que dita, nestas primeiras décadas, a distinção desta corrida de bicicletas face às demais. A Volta, seguindo os contornos da pertença, gera um movimento centrípeto que intensifica a produção de discursos sobre nós próprios, sobre a grande comunidade cujo território os ciclistas percorrem. Um ritual que sucede, ano após ano, graças ao reforço do drama da competição desportiva.
CIRCUITO HÍPICO DE PORTUGAL: Para realizar a primeira Volta a Portugal, o Diário de Notícias contava já com a experiência da realização do Circuito Hípico de Portugal. A Volta a Portugal a cavalo parte de Lisboa a 10 de Outubro de 1925 e, depois de dar a volta ao país, acaba também em Lisboa no dia 4 de Novembro do mesmo ano. Este evento teve grande popularidade graças à disputa levada a cabo entre um cavaleiro militar, que usou três montadas, e um cavaleiro civil, José Tanganho, que ganhou a circuito usando unicamente o seu próprio cavalo.
Partida da Volta a Portugal de 1927, Cais do Sodré no embarque para Almada, onde a partida real se dá. A partida simbólica da primeira etapa foi no Marquês de Pombal e a chegada da ultima etapa aconteceu na Avenida da Liberdade.
Em 1933, o mapa divulgado pela revista desportiva Stadium contem o itinerário e, nele, as figuras alusivas à singularidade de cada um dos lugares que a Volta visita.
No ciclismo de estrada das primeiras décadas do século XX, o corredor sujeita-se à máquina que pesa cerca de 18 kg, que facilmente fura e avaria ao cair nos buracos das estradas.
A Volta a Portugal é singular, face aos outros eventos desportivos, porque aciona mecanismos de memória que ligam a competição à beleza da paisagem do território e, ao mesmo tempo, revela geografias do vigor, etapas de montanha difíceis de vencer e que, por isso mesmo, se constituem em lugares emblemáticos que farão parte dos processos de heroicidade, da tradição do próprio evento, e da identidade nacional. A interpelação do território facilita, deste modo, processos de memória coletiva associada à geografia dos lugares que, por sua vez, proporcionam narrativas que naturalizam a pertença nacional. Mas a natureza mediática das voltas exige mudança e inovação o que irremediavelmente afasta o desenho do aspeto sedutor contido nos percursos que têm a fronteira como referência. Largados os limites fundadores, os novos percursos exploram a orografia do território, as etapas de montanha, são elas que propiciam a incerteza nos resultados da competição e, desse modo, alimentam as narrativas épicas nos media. A Volta, seguindo os contornos da pertença, gera um movimento centrípeto que intensifica a produção de discursos sobre nós próprios, sobre a grande comunidade cujo território os ciclistas percorrem. Um ritual que sucede, ano após ano, graças ao reforço do drama da competição desportiva.
PORTO – LISBOA
A primeira edição do Porto – Lisboa data de 1911, já que em 1910 não se conseguiu inscrições em número suficiente para a realizar. Foi durante décadas a prova de referência do ciclismo português, uma prova com rampas difíceis de ultrapassar e, por isso mesmo, eram os lugares escolhidos pelos espectadores, que aí se juntavam para ver passar os ciclistas. Essas rampas eram: a subida de Santa Clara em Coimbra, a rampa das Padeiras em Alcobaça, as lombas de Vila Franca do Rosário perto da Malveira e, por ultimo, a Calçada da Carriche à entrada de Lisboa.
O primeiro vencedor do Porto-Lisboa é Charles George que demora cerca de 18 horas, João Francisco vence a prova por três vezes (1927,1928, 1933), feito repetido logo a seguir por José Maria Nicolau (1932, 1934 e 1935) e, décadas mais tarde, Fernando Mendes (1971, 1972 e 1973). Em 1959, Carlos Carvalho realiza a prova em praticamente metade do tempo do primeiro vencedor graças a algumas melhorias da estrada e também da própria bicicleta que, entretanto, reduziu muito o seu peso e tem já um quadro de mudanças que aliviam o esforço o que demonstra que, maior parte dos casos, a comparação de recordes só faz sentido se se pretende avaliar também a mudança tecnológica associada à performance humana.
A primeira edição da corrida Porto – Lisboa data de 1911
Para se compreender, no aspecto do esforço dispendido e coragem para se vencer as dificuldade dos primeiros Lisboa-Porto, basta dizer que os 300 km percorridos durante longos anos eram estradas não alcatroadas e sobre bicicletas com cerca de 18 kg. Os ciclistas partiam de madrugada, ainda noite, para conseguirem chegar a Lisboa ainda de dia. Para o bom andamento da corrida, a UVP contava com a ajuda dos bombeiros e da GNR das terras que faziam parte do percurso. “Os primeiros alumiavam com archotes os pontos do itinerário mais difíceis e perigosos; os segundos evitavam aglomerações que prejudicassem a marcha dos concorrentes. ” (Moreira, 1980, 71). A partir dos anos 70, com a melhoria da estrada as principais dificuldades que geravam incerteza na vitória suavizaram, a tentativa de dividir o percurso em duas etapas não resultou e a prova acabou em 2004. A sua extensão tornou-se incompatível à luz dos novos regulamentos da União Ciclista Internacional.
PORTO – LISBOA
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CRIA – FCT – FMH
UIDB/04038/2020
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